Folha de S.Paulo

China, potência do futebol?

Ambições do país e desempenho constrange­dor levaram a plano que inclui ex-brasileiro

- Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior do diretor-geral da OMC Tatiana Prazeres

O líder chinês Xi Jinping, fã do esporte, expressou o desejo de que a China sedie e vença uma Copa do Mundo até 2050. Nesse caso, transforma­r o desejo em realidade não é trivial. Apesar da torcida do dirigente, o desempenho do futebol masculino segue sofrível.

Segundo país em número de medalhas na Olimpíada do Rio, a China terminou 2019 na desconfort­ável 76ª posição no ranking da Fifa. O time feminino é muito melhor, mas também

aqui o foco não está nelas.

Para acelerar a transforma­ção do futebol masculino, autoridade­s chinesas fizeram em 2019 um movimento ousado para padrões locais. Pela primeira vez, concederam a nacionalid­ade do país a um jogador estrangeir­o sem qualquer ascendênci­a chinesa, para poder içá-lo à condição de atacante da seleção nacional.

E assim o brasileirí­ssimo Elkeson passou a se chamar Ai Kesen.

O assunto dividiu corações

e mentes na China. A China é etnicament­e muito homogênea, com cerca de 90% da população da mesma etnia Han. Os chineses tendem a ser nacionalis­tas como poucos.

Jogador do Guangzhou Evergrande, Ai Kesen estreou na seleção chinesa em setembro. Foi curioso ver a equipe nacional da China perfilada para entrar em campo: sem nenhum traço chinês, o maranhense da cidade de Coelho Neto se destacava entre seus novos compatriot­as.

Ai Kesen fez tudo direitinho. Cantou o hino chinês antes do jogo. Enrolou-se na bandeira chinesa depois da partida para cumpriment­ar a torcida. Entre uma coisa e outra, marcou dois gols numa partida em que o balanço geral dependia não apenas do placar.

É fato que o desempenho ruim da seleção nacional afeta o brio dos chineses, altamente patriótico­s e grandes fãs de futebol. A pressão sobre Ai Kesen não será pequena.

Se seu desempenho não atender às expectativ­as, muitos se apressarão em apontar o dedo para sua origem não chinesa.

Com 1,4 bilhão de habitantes, o plano chinês para o futebol, por óbvio, não se limita a naturaliza­r jogadores estrangeir­os. A parte mais importante dele consiste em cultivar talentos locais desde cedo.

Em 2020, a China vai renovar ou construir mais de 28 mil campos de futebol em escolas chinesas. Entre 2016 e 2020, o Ministério da Educação entregará 60 mil campos renovados ou construído­s em toda a China. O governo designou 27 mil escolas como colégios vocacionad­os para o futebol; selecionou 160 distritos como zonas-piloto para promoção do futebol na escola.

A única vez em que a China se qualificou para uma Copa do

Mundo foi em 2002, e dela se despediu sem marcar nenhum gol. Participar da Copa do Qatar já será uma vitória, e os chineses esperam contar com as graças de Ai Kesen para isso.

O caminho da China rumo à condição de potência do futebol masculino será longo —mas os estrangeir­os podem encurtar o percurso. O equilíbrio é delicado. Se depender apenas da geração que está sendo formada, pode levar décadas para a China ascender à primeira liga do futebol. Por outro lado, uma seleção de jogadores sem vínculo algum com a China tampouco resolve a frustração nacional.

Pragmático­s mas não bobos, os chineses devem viabilizar mais naturaliza­ções no futuro próximo —mas não muitas. Afinal, não é nada chinês ter que recorrer a estrangeir­os para salvar a pátria.

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