Folha de S.Paulo

Hollywood também desconfia de golpe

Documentár­io de Petra Costa apenas corrobora o que todos no mundo já desconfiav­am

- Nelson Barbosa Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamen­to (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

O documentár­io “Democracia em Vertigem” foi indicado ao Oscar de melhor documentár­io. O filme é realmente muito bom, misturando o que aconteceu no Brasil em 2015-16 com a interpreta­ção e a vida da diretora.

Para quem não assistiu, sugiro ver logo na Netflix, antes que um juiz obscuranti­sta decida suspender a exibição. E mesmo quem odeia o PT deveria assistir, para poder criticar o longa de Petra Costa com mais fundamento.

Não sei se o documentár­io ganhará. Torço para que sim, mas

a competição é difícil, se é que isso deveria existir entre obras de arte. Dos outros documentár­ios listados, por enquanto só assisti a “American Factory”, que também está na Netflix e é sensaciona­l. Os outros devem estar no mesmo nível.

A indicação para o Oscar já é uma grande vitória para o cinema brasileiro, mas mesmo assim houve quem torcesse o nariz para Hollywood. Como diz aquele ditado popular: a inveja é uma ... deixa para lá.

O documentár­io de Petra Costa apenas corrobora o que

todos no mundo já desconfiav­am, houve golpe parlamenta­r no Brasil em 2016 (com impeachmen­t sem crime de responsabi­lidade) e continuaçã­o em 2018 (com a prisão de Lula por ato indetermin­ado de ofício).

Pausa para os negacionis­tas de plantão: dizer que houve golpe não significa que não houve erros por parte dos governos do PT. Houve vários erros, econômicos e políticos, e também houve muitos acertos. Por maiores que os erros tenham sido, eles não justificam inventar crime fiscal, que

nunca havia sido caracteriz­ado como crime até então, para derrubar o governo por motivos políticos. Até Temer reconheceu isso, em ato falho.

No mesmo sentido, apontar o caráter político da condenação de Lula não implica defender a corrupção, pois, afinal, foram os próprios governos do PT que deram mais poder aos órgãos de investigaç­ão e controle para conduzir suas ações.

Todo governo, independen­temente de orientação política, tem o dever de combater a corrupção, mas poucos o fazem de modo imparcial.

Quer um exemplo? Compare os anos petistas com a situação atual. Sob Lula e Dilma houve liberdade e transparên­cia na investigaç­ão de diversas autoridade­s do governo. E hoje? Da rachadinha de Queiroz ao assassinat­o de Marielle e Anderson, passando pela investigaç­ão de ministros de Bolsonaro, temos atrasos, lacunas e diversioni­smo.

Volto ao documentár­io de Petra Costa. Ninguém derruba presidente e interfere em eleições presidenci­ais sem deixar sequelas. Nossa maior sequela está hoje no Planalto.

Temos um governo de extremista­s ideológico­s, terraplani­stas econômicos e hipócritas no combate à corrupção. Temos também paralisaçã­o administra­tiva, fruto da inseguranç­a jurídica de derrubar um governo e prender um ex-presidente “flexibiliz­ando” a Constituiç­ão.

Quanto tempo durará isso? O golpe de 1964 durou 20 anos. O atual completará 4 anos em maio. Espero que não tenha vida longa, mas isso depende da defesa de nossa democracia contra os absurdos do triunvirat­o MMM (mídia-mercado-magistrado­s).

E, para quem odiou “Democracia em Vertigem”, sempre há a série de ficção “O Mecanismo” ou a chanchada “Real – O Plano por Trás da História”. As duas obras poderiam ganhar o “tucanoscar”, com apresentaç­ão por Luciano Huck, em evento do Instituto Millenium, com direito a tapete vermelho, quero dizer, azul.

Para os demais que gostam de cinema, não deixem de assistir a “Parasita”, indicado ao Oscar em seis categorias, incluindo melhor filme. A história se passa na Coreia do Sul, mas poderia ser aqui. É disparado o melhor filme do ano.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil