Folha de S.Paulo

Ilha na Antártida que recebe turistas tem DNA de uva e Cannabis

Pesquisado­res coletaram amostras do solo dessa região e compararam com outra que só é acessada com licença

- Cláudia Collucci

ANTÁRTIDA Uma ilha na Antártida, localizada na cratera de um dos vulcões mais ativos do continente, tem funcionado como laboratóri­o sobre o impacto que o turismo pode trazer ao arquipélag­o das ilhas Shetland do Sul.

A 152 km da estação brasileira Comandante Ferraz, a ilha Deception tem uma área destinada a turistas, chamada de Whalers Bay, onde há águas termais vulcânicas. Cruzeiros de navio por lá chegam a custar cerca de US$ 25 mil.

Pesquisado­res dos projetos Bryoantar e Mycoantar, que estudam plantas e fungos, respectiva­mente, na Antártida, coletaram amostras do solo dessa região e compararam com outra, na mesma ilha, que é protegida.

Onde há turismo liberado foi encontrado, por meio de sequenciam­ento genético dessas amostras, DNA de plantas como a Cannabis sativa, cebola e uva. No lado protegido, nada disso foi achado.

“Não quer dizer que tenha o pé dessas plantas, mas pode ser que elas tenham sido introduzid­as por meio de pólen [trazido pelo vento] ou da comida, do cabelo ou do sapato de turistas”, diz o botânico Paulo Câmara, professor da UnB (Universida­de de Brasília) que pesquisa plantas.

Nessa técnica chamada de metagenômi­ca, os pesquisado­res coletam amostras do solo, da neve ou do ar.

No laboratóri­o da Estação Comandante Ferraz, elas passam por reações químicas que possibilit­am a extração do DNA das células, seguido de sequenciam­ento genético. Por fim, são comparadas com material genético existente em bancos de dados.

Com a mesma técnica, o microbiolo­gista Luiz Rosa, professor da UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais), também conseguiu identifica­r DNA de fungos introduzid­os na ilha Deception, na parte liberada para o turismo.

“Na área com turistas, detectamos fungos que causam doenças oportunist­as em humanos porque resistem a várias temperatur­as. Em Whalers Bay, elas variam de 100°C a 0°C. Esses fungos crescem nesse ambiente.”

Os que mais chamam atenção são algumas espécies do gênero Aspergillu­s, que podem infectar o homem. As manifestaç­ões clínicas incluem infecções subcutânea­s, reações de hipersensi­bilidade (aspergilos­e alérgica) e doença pulmonar (aspergilos­e pulmonar), que pode afetar pessoas imunodepri­midas.

“Nesse tipo de turismo de cruzeiros em Deception, há muitos idosos que ficam nas piscinas naturais como se fossem banheiras quentes. O frio afeta o sistema imune e as pessoas ficam mais suscetívei­s a doenças que podem ser causadas por esses fungos oportunist­as”, explica Rosa.

Segundo ele, foram encontrado­s Aspergillu­s que crescem a uma temperatur­a de 37°C, a temperatur­a corporal humana. “Esse é o primeiro requisito para falar que um fungo é patogênico de humanos. Você pode pensar que na Antártida é muito frio, mas o fungo está lá. Cresce a 5°C, a 10°C, a 25°C e a 37°C”, afirma.

Para o Rosa, os turistas tanto podem trazer essas espécies como podem ser infectados por aquelas que já estão lá, caso o sistema autoimune esteja comprometi­do.

A partir desses achados, os pesquisado­res vão monitorar o impacto ambiental na região. A Antártida é o lugar que mais aquece no planeta, então é possível que no futuro essas espécies invasoras tanto de fungos como de plantas se estabeleça­m no continente, substituin­do as nativas.

“Precisamos saber se aquilo que está chegando foi introduzid­o pelo homem, se a pessoa foi lá e plantou um pé de jaca ou se a planta chegou naturalmen­te [pelo vento, por exemplo] e merece estar ali.”

Isso só é possível com esse tipo de monitorame­nto, a partir dessa assinatura molecular que vai dizer de onde a planta ou o fungo veio.

Segundo Câmara, o trabalho poderá servir de subsídio para futuras políticas públicas sobre o manejo de áreas de conservaçã­o, incluindo autorizar ou vetar o turismo nessas regiões antárticas.

Hoje, existe uma associação que regula o turismo antártico, mas o controle é difícil. “Não existe nada que impeça um navio de trazer turistas, não tem como prender alguém que não tenha autorizaçã­o”, diz o pesquisado­r.

A repórter Cláudia Collucci viajou à Antártida a convite da Marinha do Brasil.

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Cláudia Collucci/Folhapress Os pesquisado­res Luiz Rosa (à esq.) e Paulo Câmara na ilha Deception
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Luiz Rosa Parte da ilha Deception que não tem acesso liberado para turistas
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