Suruba e sururu
João Silvério Trevisan alude à política atual do país em romance com garotas de programa transexuais e um militar inspirado em Bolsonaro na festa de fundação de um partido de direita
SÃO PAULO “A Idade de Ouro do Brasil” é o tipo de livro que deixaria Jair Bolsonaro com o dedo coçando para ir ao Twitter.
O novo romance de João Silvério Trevisan, ganhador do Jabuti e de dois prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte, põe um personagem declaradamente inspirado no presidente sob o mesmo teto que um grupo de políticos corruptos e uma turma de garotas de programa transexuais, liderada pela protagonista da obra, Vera Bee.
Vera é uma cafetina que sai de São Paulo numa Pajero levando um grupo de prostitutas para divertir os políticos que se reúnem no Solar das Rosáceas, onde estudam fundar um novo partido de direita. Mas o que era para ser uma suruba acaba virando um sururu. Fazem parte da caravana Maria Grinalda, Glorioso de Orléans, Dalila Darling, Menininha e Lili Manjuba.
O sobrenome artístico dessa última é um aceno ao seu maior atributo. E não está só. São 20 sinônimos fálicos —manjuba, neca, nicaô, bichano, pau, jeba, necona, cacete, genital, pinto, totem, joia, pirocão, laquaqua, rola, pica, benga, vara, trolha e toraço. O que é fichinha para Trevisan, que já chegou a reunir 200 nomes de pênis num só conto.
Tanto os políticos quanto as garotas trans são baseados em figuras reais, conta o autor de 75 anos, na sala do seu apartamento no centro de São Paulo. “Fui me inspirando em fatos desde aquele período de 1987, quando comecei a escrever. A Vera Bee, professora, eu conheci na vida real, era o Marcão. Ele dava aula na universidade e à noite se montava para fazer travestismo.”
O romance se passa em 2009, no auge da era Lula —a tal “idade de ouro” do título é pura ironia. Mas o livro tem 30 anos de idade. Nasceu como um roteiro de filme, que seria estrelado por Marco Nanini. Mas, no fim da década de 1980, Trevisan não conseguiu quem financiasse o projeto. “Realmente, eu pensava que estava não sei em que país.”
Por volta de 2010, um diretor ameaçou interesse por fazer a obra. “A gente fez uma leitura na casa dele e, no fim, estavam todos ‘absurdados’. Eu inclusive.” Foi nesse momento que Trevisan jogou a toalha.
Os escritos seriam vertidos num romance. Mas um romance que não enruste o fato de ter nascido do cinema — tanto que os capítulos se chamam “sequencial”, como num roteiro. Em 2016, Trevisan tinha terminado o manuscrito.
Mas foi preciso retomar o romance no final de 2018, em meio à corrida presidencial.
Terminou antes das eleições. Após a posse de Bolsonaro, ele releu “A Idade de Ouro”. E sentiu falta de algo. “Vou precisar botar esse personagem, porque em 2016 eu não poderia pensar que isso ia acontecer. Cara, fiquei três meses estudando esse personagem.”
A alegoria de Bolsonaro surge como uma figura anedótica da Câmara, convidada para fazer parte do partido, e faz uma aparição rasante na mansão em que se passa o romance. Quando Paulo Gervásio, um tal Capitão Paulão, entra na sala, mesmo os macacos mais velhos da política, como um pastor moralista e um velho usineiro, ficam incomodados.
Há certo descompasso entre seu ar de arrogância e o andar provinciano, quase acaipirado. Depois de entrar numa discussão com os homens acostumados ao poder, o capitão faz uma saída de cena dramática.
“Ele entra e ele sai, com um revólver na mão. Foi a única coisa que eu consegui fazer. Mas a presença dele deu ao romance uma outra guinada, que é quase uma guinada de maldição.” A maldição existe porque o livro, acredita Trevisan, tem um caráter profético.
“Essas travestis, mulheres trans e drag queens são tão marginalizadas que se tornam proféticas. Profetizam no sentido bíblico. Os profetas bíblicos não eram os que interpretavam o futuro, e sim interpretavam o presente. E eram por isso jogados na cova do leão.”
A função profética também mostra as caras no nome do partido que os políticos estão reunidos para criar, um tal de PNL. Lembrou uma agremiação de direita que saiu das sombras para ser um dos maiores do Brasil? Se sim, foi uma previsão de futuro.
“Cara, eu já tinha posto Partido Nacional Liberal na primeira versão. E eu falei ‘eu não vou mudar!’. Isso é de 2016. Se quiserem dizer que é referência ao PSL, paciência, mas a verdade é que já existia.”
Trevisan não tem medo de lançar um romance desses num contexto em que um beijo na boca entre personagens de história em quadrinhos pende à censura, como ocorreu na Bienal do Rio de 2019?
“Já tive o meu infarto, então o que pode acontecer de pior?” A questão cardíaca, inclusive, atrasou o lançamento do livro. Três dias antes de entregar o manuscrito, no ano passado, o autor se sentiu mal e teve de ir ao hospital, onde pôs stents —molas que desobstruem as artérias e veias entupidas.
“Eu quero que as pessoas pensem o Brasil. Quando poderíamos pensar que, depois de 13 anos de um governo supostamente progressista, nós chegaríamos a esse ponto?”
O medo mais real na vida do autor é o das doenças que assolam sua cadela de 12 anos, com quem tinha passado o dia anterior à entrevista no hospital. “Nunca acreditei em messias nem em manual. O Jair é o outro lado da moeda do messias de esquerda. É importante a gente se perguntar qual é o nosso papel no aparecimento desse personagem nesse momento histórico.”
Não é hora de ser menos afrontoso, afirma Trevisan, que diz ser propenso mais a um ceticismo criativo do que a um pessimismo. “A função de qualquer criação artística é instigar, é provocar. Nosso papel nesse momento é continuar fazendo tudo o que sempre fizemos. Não vamos sufocar o que somos por conta de gritaria, que tem exatamente a função de nos pautar psicologicamente e nos aterrorizar. O fascismo faz exatamente isso, ele começa metendo medo.”
Trevisan classifica seu novo romance como cruel. “E eu não poderia ter feito de outra maneira, porque nós estamos num país crudelíssimo. Outro dia eu fui reler o último capítulo e caí em prantos. É engraçado porque a primeira coisa que eu fiz com uma travesti foi meu primeiro filme, em 1970 —uma travesti com um penico na cabeça e frutas, declamando Mário de Andrade. Essa personagem, de certo modo, eu a retomo aqui.”
A volta às origens é vista mais com tristeza do que com saudosismo. “A ideia que me dá é que o Brasil vive realmente em estado de eterno retorno.”
Terminada a entrevista, Trevisan convida a ver um quadro em sua biblioteca. A foto tem seu nome e, em alemão, uma frase que ele disse em um evento na Europa: “O brasileiro tem o exílio no coração.”
LIVRO A Idade de Ouro do Brasil ***** João Silvério Trevisan. Ed. Alfaguara. R$ 54,90 (216 págs.)
“A Idade de Ouro do Brasil” é um livro insólito.
No mais recente romance de João Silvério Trevisan, políticos e travestis passam um fim de semana juntos. Não é toda hora que isso acontece na literatura brasileira.
Durante o feriado da Semana Santa de 2009, um grupo de políticos se reúne numa casa de campo no interior de São Paulo para discutir a fundação de um novo partido.
Na casa com eles, está uma trupe de travestis, As Afrodites da Pauliceia, contratada pelo organizador do encontro para fazer um show e participar de uma orgia regada a cocaína com os políticos que estão hospedados na casa.
O Brasil vivia uma fase de otimismo. Era o auge do governo Lula —o país ingressara nos Brics, descobrira o pré-sal, apresentava avanços sociais e tinha reconhecimento internacional. Parecia que ia decolar. Na realidade, não foi o que aconteceu.
Não é o que os governantes querem que aconteça. A ideia daqueles políticos, reunidos para fundar algo novo, era justamente garantir que tudo continuasse velho, e que os esquemas que os beneficiavam se mantivessem. Muda a embalagem, mas o produto segue o mesmo.
A visita à casa, inesperada e agressiva, de um ex-capitão do Exército alçado à classe política desvirtua os planos do grupo para o fim de semana. Depois de sua aparição, a dinâmica do encontro vai para o brejo, com resultados violentos e perturbadores.
É como se os acontecimentos daquele fim de semana de Páscoa prenunciassem o fim trágico dos êxitos que o Brasil, ilusoriamente, vivia. Mesmo no auge, subjazia a miséria. O que parecia sublime trazia em si o germe do grotesco. Trevisan declarou em entrevista que sua ideia, com o livro, “era desvelar um Brasil invisível”. É isso o que ele faz.
Em sua concepção original, em 1987, “A Idade de Ouro do Brasil” era um roteiro de cinema. É importante que se tenha isso em mente, porque traços desse DNA cinematográfico estão em toda aparte.
Percebe-se que Trevisan se preocupou em criar uma “cenografia” para o livro. A história se passa quase inteiramente no Solar das Rosáceas, uma casa de campo no interior de São Paulo, construída em forma de flor, descrita minuciosamente. Durante a leitura do livro, pode-se vê-la.
De resto, os personagens atuam —carregam a maquiagem forte de quem vai se apresentar no palco e tem de ser reconhecido de longe. Todos identificamos cada um daqueles tipos políticos e travestis. O leitor sente-se como câmera invisível.
A sugestão é de que o Brasil nunca muda, vive preso num ciclo vicioso de eterno retorno, numa dialética involutiva sem fim. Quando dá a impressão de estar mudando, é só uma acomodação para que nenhuma transformação estrutural aconteça.
João Silvério Trevisan já declarou ter obsessão pela trajetória histórica nacional. “A Idade de Ouro do Brasil”, seu 15º livro, encerra uma trilogia sobre o país, iniciada com “Ana em Veneza”, de 1994, e “Rei do Cheiro”, de 2009.
É seu romance mais explicitamente político. Não há metáfora de esperança. Todos os caminhos levam tão somente à tragédia nacional. Desmascara a história de um país que perdeu o rumo, mas não se deu conta disso.
“A Idade de Ouro” é uma leitura fluida e fácil, mas que fica. No início, tudo parece exagerado e implausível. Mais adiante é que o leitor se dá conta de que é essa a realidade do Brasil —os personagens são estereotipados e a história, muito louca.
Mas, ao força ramão na scores, não se deixa lugarà dúvida. Tudoé muito louco, ma sé real, como no Brasil de hoje.