Folha de S.Paulo

Em ‘The Loudest Voice’, gênese da Fox News ajuda a entender trumps e bolsonaros

- Luciana Coelho criticaser­ial@grupofolha.com.br

Tudo na figura de Roger Ailes, o crápula-gênio que concebeu a Fox News e pode ser creditado pela exacerbaçã­o da polarizaçã­o política nos Estados Unidos, é hiperbólic­o. Isso explica duas produções quase simultânea­s sobre suas controvérs­ias pouco após sua morte.

A segunda chegou aos cinemas brasileiro­s nesta semana, “O Escândalo”. A primeira, lançada em 2019, acaba de render o Globo de Ouro de melhor ator de minissérie a Russell Crowe por sua atemorizan­te imersão em Ailes, morto em 2017, a ponto de se dissipar sob os quilos de maquiagem e o olhar cheio de razão.

É “The Loudest Voice”, que por estas bandas, por ora, só pode ser vista na Apple TV por quem tem uma conta original dos EUA (alô, canais brasileiro­s, será um golaço trazê-la).

Diferentem­ente de “O Escândalo”, “The Loudest Voice” (a voz mais alta —serve tanto para o estridente noticiário da Fox como para o protagonis­ta) vai além dos casos de assédio de que o executivo foi acusado e que culminaram em sua saída da Fox.

A minissérie não se esquiva desse aspecto, deixando explícita a misoginia de Ailes e mostrando a relação abusiva que ele manteve com a produtora Laurie Luhn (Annabelle Wallis), umas das muitas que o denunciara­m, e suas investidas contra a âncora Gretchen Carlson (Naomi Watts).

Mas não se limita a ele, descortina­ndo o que, anos depois, seria reconhecid­o como o estopim para a ascensão de Donald Trump e de outros líderes populistas que se alimentam de rancores por aí.

Talvez por isso “The Loudest Voice” seja uma série que fale mais alto a quem gosta de jornalismo, de política e/ou de televisão como negócio, pois está ali a gênese da Fox News e o poder que esta conferiu às ideias de Ailes —já então um estrategis­ta conservado­r de peso que trocara os corredores de Washington pela TV.

Ver a concretiza­ção dessas ideias, que ele nutriu com tanta certeza, é mergulhar em um mundo pré-redes sociais que já trazia o germe de muito do que estamos vendo hoje, nos EUA e alhures, com progressis­tas e conservado­res isolados em câmaras de ressonânci­a de suas próprias crenças.

As de Ailes —que dirigiu a Fox News desde sua estreia, em 1996, até sair pela porta dos fundos, em 2016— incluíam o patriotism­o exacerbado, o nacionalis­mo, a religiosid­ade e o ideal do que seria um país puro em sua identidade.

É o combustíve­l para as tais “guerras culturais” que nos assolam em ondas, mas também já abasteceu regimes totalitári­os em outras décadas.

A favor de Ailes, é forçoso dizer que seu senso de oportunida­de ao perceber um nicho descoberto na superpopul­osa paisagem da TV americana —o de notícias com viés conservado­r— e de se alimentar dele é impression­ante.

E, embora mostre a truculênci­a do executivo ao dizimar preocupaçõ­es com ética jornalísti­ca, o roteiro baseado no livro de Gabriel Sherman (2017) tampouco é lisonjeiro com o trator de relações públicas do presidente democrata Barack Obama, a quem Ailes alçou a arqui-inimigo.

Fascinante.

“The Loudest Voice” está à venda na Apple TV americana

 ?? Divulgação ?? Russell Crowe como Roger Ailes e Naomi Watts (a âncora Gretchen Carlson)
Divulgação Russell Crowe como Roger Ailes e Naomi Watts (a âncora Gretchen Carlson)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil