Folha de S.Paulo

Épico passeia por 40 anos de história da Itália

‘A Melhor Juventude’ foi lançado em 2003, mas só agora chega aos cinemas brasileiro­s, com as suas seis horas de duração

- Inácio Araujo

são paulo Nada deixa Marco Tullio Giordana tão satisfeito quanto comparar “A Melhor Juventude” aos filmes de Valerio Zurlini. Seus olhos brilham: “É o meu mestre!”.

Lamenta, logo em seguida, o fato de Zurlini ter tido muito menos reconhecim­ento do que merecia. “Os críticos foram muito injustos com ele”, em especial na Itália, diz. “Seus últimos filmes trazem muita melancolia, isso talvez seja um dos motivos.”

A melancolia não é, certamente, a marca de “A Melhor Juventude”, que abarca 40 anos da história de uma família italiana, desde o fim do milagre econômico em seu país até 2003, passando pelas crises políticas pós1968 (Brigadas Vermelhas) e o combate à corrupção (Operação Mãos Limpas) e à máfia.

Se o destino italiano é marcado por crises, de radicalism­o político ao enfrentame­nto à corrupção, “A Melhor da Juventude” registra todo esse movimento. Mas não espere de Giordana um juízo sobre a situação política de seu país. “Hoje a cena política é ocupada pela radicaliza­ção das posições populistas e de extrema direita, um pouco como em grande parte do mundo. Mas eu não sou um expert em política. Nossa tarefa de artistas é como a do termômetro: registrar a febre que sobe.”

O destino de seu filme é não menos tempestuos­o que o da própria Itália. Produzido pela RAI, o filme acabou engavetado por “excesso de qualidade”, segundo o cineasta. A direção da emissora estatal italiana teria alegado que o longa não conviria para o público popular, num momento em que a RAI disputava audiência com as redes privadas.

O produtor do filme, Angelo Barbagallo, o levou ao Festival de Cannes, onde “A Melhor Juventude” foi enfim apresentad­o e ganhou o prêmio da mostra Um Certo Olhar. A partir daí, o título colecionou prêmios dentro e fora da Itália. E, sim, foi finalmente exibido pela RAI na forma de minissérie em cinco capítulos. “E com bela audiência”, afirma Giordana.

Ao contrário de Zurlini, que conheceu em 1981, um ano antes de sua morte, Giordana não tem do que se queixar em matéria de reconhecim­ento. Com 39 anos de carreira, a galeria de prêmios é consideráv­el, mas, até hoje, ele tem só 17 longas já feitos.

Talvez isso se deva ao fato de que sua carreira foi construída num momento de transição. As grandes gerações do cinema italiano chegavam ao final, o cinema popular minguava, tudo passou a depender do apoio estatal. “E os políticos odeiam o cinema. Porque o cinema os critica. E o poder odeia ser criticado”, diz.

Ao contrário de um Nanni Moretti, por exemplo, que não poupa políticos como Silvio Berlusconi, Giordana não se preocupa em destacar um político entre tantos. O inimigo do cinema é o poder. Ponto.

A cultura italiana, ao contrário, o fascina. Talvez por isso seu filme destaque aquilo que considera a única grande contribuiç­ão italiana à cultura na segunda metade do século passado: o trabalho de Franco Basaglia, pioneiro da luta antimanico­mial.

Não é só. Os personagen­s cruzam o país, de Palermo a Turim, de Milão a Florença, passando por Roma, claro. É um ideal italiano de beleza que atravessa o filme tanto quanto as crises que abalaram o país nos últimos 40 anos do século passado. Tudo isso está num filme muito marcado pela relação entre dois irmãos. Bem menos melancólic­a do que no “Dois Destinos” de seu mestre Zurlini, mas não menos marcante.

CRÍTICA A Melhor Juventude ***** Itália, 2003. Direção: Marco Tullio Giordana. Com: Luigi Lo Cascio, Alessio Boni e Jasmine Trinca. Em cartaz

Quando acaba a primeira parte de “A Melhor Juventude”, há quem consulte o relógio para conferir se as luzes não acenderam por engano. Não. Com efeito, se passaram as cerca de três primeiras horas da saga familiar dirigida por Marco Tullio Giordana.

São no total seis horas e seis minutos de projeção, tendo por centro os destinos dos irmãos Nicola (Luigi Lo Cascio) e Matteo (Alessio Boni). A história começa no fim do chamado milagre italiano, nos anos 1960, quando os dois são estudantes universitá­rios —Nicola é um extroverti­do aspirante a médico e Matteo, um literato introverti­do e cabeludo.

O encontro deles com a jovem e perturbada Giorgia de certo modo marcará o futuro de ambos. Enquanto Nicola se engaja na luta antimanico­mial, Matteo buscará outro caminho: corta o cabelo, entra para o exército, torna-se policial. A reação do primeiro é racional; a do segundo, emocional. É uma busca por algo que lhe dê um sentido de disciplina.

O filme é marcado por várias transforma­ções. A primeira diz respeito a Giulia, a jovem pianista que Nicola encontra e por quem se apaixona, enquanto ambos ajudam Florença a superara catastrófi­ca enchente de 1966, que atingiu inclusive arquivos e museus. Nicola e Giu liase casam e têm uma filha. Mas Giulia abandonará o piano e mais tarde a família pela luta política.

Luta perigosa, numa Itália já em convulsão. Ela e Nicola estão do mesmo lado, enfrentand­o a polícia nos embates do final da década de 1960. Mas do outro lado, distribuin­do borrachada­s, estará o frágil, contraditó­rio e violento Matteo.

Muitas coisas se sucederão, entre elas o engajament­o de Giulia nas Brigadas Vermelhas, o aprofundam­ento da luta de Nicola contra as internaçõe­s psiquiátri­cas e a intensific­ação das contradiçõ­es de Matteo, suspenso entre o caráter sensível e o trabalho “lei e ordem”.

Muita coisa mais acontecerá ao longo dessa saga que, se nunca deixa de ser familiar, constitui a rigor o pano de fundo das transforma­ções da Itália ao longo de 40 anos.

Não falta ambição a Marco Tullio Giordana. Mas, verdade seja dita, ele se mostra acada cenaàal turado desafio, sejapel afluência de sua narrativa, pela beleza que encontra nas locações enas personagen­s( por serem discretas, não são menos sensíveis ).

Oquem ais chama a atenção, no entanto, éa maneira calorosa como se aproxima de seus personagen­s e os acompanha ao longo de erros e acertos, encontros e desencontr­os, como se o objetivo fosse acolher as pessoas, apesar de suas dificuldad­es, fraquezas e desencontr­os eventuais.

Num momento em que a produção italiana deixa tantas saudades do que já foi um dia, o cinema de Giordana é um alento. Por vezes, esse vasto, talentoso, inteligent­íssimo painel da vida italiana que é “A Melhor Juventude” parece mesmo um milagre.

Até porque, sendo perfeitame­nte italiano (as personagen­s viajam por quase todo o país), seus elementos são tão universais quanto próximos de nós.

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Divulgação Alessio Boni, Luigi Lo Cascio e Jasmine Trinca em cena do filme ‘A Melhor Juventude’

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