Folha de S.Paulo

Espetáculo cruza García Márquez e história de luto de atriz amazonense

Com trechos de ‘Maria dos Prazeres’, do autor colombiano, peça traça paralelo entre ditadura franquista e Brasil hoje

- Gustavo Fioratti

são paulo O diretor de teatro Ivan Andrade não era muito chegado a trabalhar com o que ficou conhecido como teatro de depoimento­s —uma criação cênica que valoriza a história pessoal dos artistas em cena. Ele diz que esse gênero pode conseguir momentos de beleza e encantamen­to. Mas também que há frequente o risco de narcisismo.

Uma amiga, porém, quebrou o regime de Andrade. A atriz Maristela Chelala (autora de “Pontos de Vista de um Palhaço”) chegou com a proposta de usar um texto literário que se entrelaça com a vida pessoal dela. Eles estreiam nesta sexta (17) “Dos Prazeres”, baseada em “Maria dos Prazeres”, do livro de contos “Doze Contos Peregrinos”, de Gabriel García Márquez.

Há diversos pontos em comum entre a vida de Chelala e a da protagonis­ta do conto, mas o principal é que ambas nasceram no norte do Brasil e expressam uma relação dolorosa e peculiar com a morte.

Dos Prazeres é uma personagem que vive as brutalidad­es do franquismo e dedica tempo nos preparativ­os de seu próprio funeral. Chelala leu e releu o texto e se conectou com a forma com que as chuvas e os rios marcam um estado fúnebre: ela perdeu a mãe afogada ainda na infância e o pai morreu logo depois, em um acidente de carro.

A dramaturgi­a da peça, assinada por Ivan Marsiglia, evita o risco de que o texto de García Márquez seja usado em um exercício narcísico.

“Poderia existir certa limitação nossa de, em vez de corrermos para dialogar com a grandeza de um autor, a gente reduzisse esse autor pondo ele no nosso umbigo”, diz Andrade.

O resultado da dramaturgi­a que foi sendo costurada durante ensaios é o de uma obra dividida em camadas. Sozinha em cena, Chelala por vezes se dirige à plateia, contando, por exemplo, que seus pais, um dia, decidiram passar a Semana Santa “numa ilha bem perto de Manaus”.

“Meu pai alugou uma lancha linda, com banco de couro e rádio pra eles ouvirem música durante o trajeto. Imagino que quando eles estavam arrumando as coisas pra saírem eu tenha olhado e dito: ‘E eu?’. Minha mãe deve ter me pegado no colo e dito: ‘Você é muito pequena, meu amor. Você vai ficar com a sua avó’.”

A pequena Chelala ficou. A lancha virou. E foi nesse episódio que perdeu a mãe.

Em um momento seguinte, ela dá voz ao narrador da história escrita por García Márquez. “[María dos Prazeres] cumpriment­ou várias pessoas de outros domingos menos memoráveis, embora mal as tenha reconhecid­o, pois havia passado tanto tempo desde que as viu pela primeira vez que já não estavam com roupas de luto, nem choravam e punham as flores sobre as tumbas sem pensar em seus mortos.”

Valoriza-se também, no texto, o contexto em que a história do autor colombiano transcorre, em um momento posterior à Guerra Civil Espanhola, que ocorreu entre 1936 e 1939 e que, com a vitória dos nacionalis­tas, resultou na ditadura de Francisco Franco, que foi governante entre 1938 e 1973.

Forma-se ali uma metáfora para a atualidade, ou dias em que “o reacionari­smo se traveste de conservado­rismo, não só no Brasil, mas no mundo”, define Andrade. Para o diretor, a personagem de García Márquez “percebe que não é ela que está morrendo ali, é tudo o que está ao redor dela, no contexto de um regime franquista brutal”.

Diretor de teatro, pesquisado­r de teoria e encenação teatral com mestrado na USP, Andrade dirigiu “O Mal-Entendido”, de Albert Camus (2018), “Amigos Ausentes”, de Alan Ayckbourn (2008) e “Entreatos”, de Gero Camilo (2005).

Em “Dos Prazeres”, resume o encenador, retrata-se uma trajetória pessoal no contexto de “um sufocament­o social em que a pessoa tem uma percepção de pulsar e morte, porém encontra neste percurso dela um desabrocha­r”.

Ou seja, nem todos os dias dessa trajetória estarão nublados. Já adiantada a peça, a mudança de rumos e de clima se dá por meio de um encontro amoroso e de “um reencontro com o prazer e a libido”, como resume o diretor.

Dos Prazeres Sesc Vila Mariana, r. Pelotas, 141, São Paulo. Sex., às 20h, e sáb., às 18h (sessão extra no dia 20/2, às 20h). Até 21/2. R$ 9 a R$ 30.

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