Folha de S.Paulo

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Depois de resgate da década de 1980, novas versões de clássicos feitos nos anos 1990 provocam debate sobre o ciclo vicioso da nostalgia na cultura pop contemporâ­nea

- Clara Balbi

Resgate de clássicos dos anos 1990 levam a debate sobre ciclo vicioso da nostalgia

são paulo “Os Bad Boys”, “Dr. Dolittle”, “Convenção das Bruxas”. Você já assistiu a esses filmes. Mas há trinta anos, mais ou menos, nos idos anos 1990 —e, provavelme­nte, em VHS. Agora, em plenos 2020, esses e outros estão de volta, no cinema (ou no streaming) mais perto de você.

A onda vem depois de um revival dos anos 1980 que incluiu refilmagen­s de “Os Caça-Fantasmas”, “Karatê Kid” e “Blade Runner”, além de títulos que beberam diretament­e daquela estética, como o fenômeno “Stranger Things”. E também das muitas referência­s aos mesmos 1990 que pipocaram na moda nos últimos tempos, como as calças de cintura alta, sem elastano, apelidadas de “jeans de mãe”, e os tênis brancos grandalhõe­s.

O que motiva a pergunta: a cultura pop está condenada a viver num ciclo eterno de nostalgia, em que as tendências de décadas passadas voltam a cada par de anos? Ou a sensação de que o passado se repete no presente é só isso —uma sensação, sem lastro na realidade?

Henrique Diaz, especialis­ta em tendências da Box1824, diz que não estamos exatamente mais nostálgico­s do que nossos antepassad­os. Mas, graças à tecnologia, temos mais oportunida­des do que eles de pôr esse sentimento em prática.

Em parte, porque as próprias redes sociais suscitam que tenhamos uma relação mais intensa com memórias pessoais e coletivas — basta pensar na hashtag #tbt (throwback thursday, ou quinta-feira de recordaçõe­s, em inglês) ou na aba “lembranças” do Facebook.

Por outro lado, hoje as empresas têm como mapear esses desejos nostálgico­s de forma muito mais eficiente, oferecendo, digamos, um ingresso para a turnê de Sandy & Junior no segundo em que você procura uma música da dupla no Google. “E isso vira uma indústria”, afirma Diaz.

No caso de Hollywood, vira uma indústria muito bemsucedid­a, já que títulos testados e aprovados pelo público apresentam muito menos riscos financeiro­s. Coisa que a Disney, atual líder de bilheteria, parece ter notado.

Além das refilmagen­s com atores de seus clássicos animados —que renderam quase US$ 3 bilhões, ou R$ 12,5 bilhões à empresa no ano passado—, ela anunciou que ao menos três versões de clássicos dos anos 1990 entrarão no catálogo do Disney+, sua recémlança­da plataforma de streaming. São títulos como “Esqueceram de Mim”, “Mudança de Hábito” e “Abracadabr­a”.

Outras plataforma­s vão pelo mesmo caminho. A Hulu anunciou uma versão repaginada de “Alta Fidelidade”. A Netflix, um novo “O Clube das Babás”.

Vale avisar que isso não significa que a nostalgia pelos anos 1980 tenha se esgotado. Diaz afirma que esse ciclo de retomada de ideias não é exato, e sim renovado a cada vez que uma geração conquista um certo nível de poder aquisitivo.

É o caso dos millenials de hoje, faixa etária que compreende dos 25 aos 40 anos —ou seja, quem cresceu nos anos 1990 atingiu há pouco a independên­cia financeira.

Além disso, continua o analista, essas apropriaçõ­es são sempre releituras.

A adaptação da comédia romântica britânica “Quatro Casamentos e um Funeral” da Hulu mostra isso. Na série, lançada no ano passado, Hugh Grant e Andie MacDowell foram substituíd­os por um casal multirraci­al, formado por Nathalie Emmanuel (a Missandei de “Game of Thrones”) e o indiano Nikesh Patel.

Algo semelhante aconteceu com “Jumanji”. A versão atual do longa de 1995 já ganhou até mesmo uma sequência, “Jumanji: Próxima Fase”, lançada no Brasil na última quinta (16).

Nela, os protagonis­tas wasp —siglaquede­signaosame­ricanos brancos e protestant­es— deram lugar a um time composto pelo humorista Kevin Hart, negro, Awkwafina, asiática, além do musculoso Dwayne Johnson e de Jack Black.

A trupe se completa com a escocesa Kate Gillan. Ela conta ter ficado irritada quando soube do remake. “Pensei: nada mais é sagrado?”, relembra a atriz, de passagem por São Paulo para promover a franquia. Mas, continua, mudou de ideia ao ler o roteiro, que transforma o jogo de tabuleiro original num videogame.

“Não é um remake, mas uma recriação que mantém traços do filme original para satisfazer os fãs”, afirma. “A maior diferença é que, em vez de o jogo contaminar a realidade, você é que entra dentro dele. O que é incrível para quem sempre imaginou como seria dentro daquele mundo selvagem e assustador.”

Christine Sprengler, professora da Universida­de Western, no Canadá, é outra a defender que esses remakes todos podem oferecer algo para além do conforto das memórias.

Autora de “Screening Nostalgia” (sem edição no Brasil), ela argumenta, em entrevista por email, que eles têm o potencial de revelar conexões entre o passado e o presente de um modo que obras originais talvez não conseguiss­em. E, por mais que a cultura seja cíclica, ela nunca deixa de traçar comentário­s sobre seus respectivo­s contextos sociais, políticos, econômicos, ambientais.

Há quem seja mais pessimista acerca dessa perspectiv­a de eternos retornos. É o caso de um texto de Amanda Mull para a revista The Atlantic que circulou neste finzinho da década. Nele, a jornalista argumenta que as tecnologia­s destruíram nossa noção de tempo linear, e vem daí a sensação de que vivemos num presente difuso e onipresent­e.

Doutora em literatura comparada pela Universida­de Federal de Minas Gerais, , Camila Figueiredo diz que alguns teóricos, como o alemão Hans Ulrich Gumbrecht, têm interpreta­ções parecidas. Mas põe na roda uma pergunta mais simples: “Até que ponto essa nostalgia representa um período de escassez de boas ideias?”.

Jumanji: Próxima Fase

EUA, 2019. Direção: Jake Kasdan. Com: Dwayne Johnson, Jack Black, Kevin Hart e Karen Gillan. 12 anos. Em cartaz

 ?? Divulgação ?? Cenas dos filmes ‘Jumanji’, ‘Esqueceram de Mim’, ‘Os Bad Boys’, ‘Alta Fidelidade’, ‘Dr. Dolittle’ e ‘Convenção das Bruxas’
Divulgação Cenas dos filmes ‘Jumanji’, ‘Esqueceram de Mim’, ‘Os Bad Boys’, ‘Alta Fidelidade’, ‘Dr. Dolittle’ e ‘Convenção das Bruxas’

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