Folha de S.Paulo

Terroir tropical

Dupla poda da parreira eleva sofisticaç­ão dos vinhos produzidos em SP e MG

- Marcelo Toledo

Com colheita fora de hora, produtores brasileiro­s fazem vinhos premiados

boa esperança (mg) A história começou há 13 anos, quando um produtor rural sofreu um infarto e o médico indicou o consumo diário de uma taça de vinho. Três anos depois, a família de Eduardo Junqueira Nogueira Junior iniciou a produção de seu próprio vinho em Boa Esperança, no sul de Minas Gerais, onde nunca ninguém tinha plantado uvas.

Na cidade cafeeira, mudanças na colheita fizeram com que o vinho local atingisse um grau de sofisticaç­ão que resultou em prêmios. O caso não é único. Outras vinícolas em São Paulo também adotaram a dupla poda dos vinhedos, transferin­do a colheita do verão, como tradiciona­lmente ocorre, para o inverno.

A alteração, aliada à amplitude térmica (diferença entre temperatur­a mínima e máxima do dia), tipo de solo e manejo, fez com que jovens vinícolas que entraram no mercado há menos de uma década passassem a colecionar prêmios e ampliassem suas produções de olho num mercado de vinhos de boa qualidade.

Há 400 hectares (quase três parques do Ibirapuera) de área cultivada com vinhedos usando a técnica no Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.

Colhendo no inverno, o período de maturação da uva ocorre em dias ensolarado­s, com noites frescas e solo relativame­nte seco, cenário apontado por pesquisado­res como fundamenta­l para o perfeito amadurecim­ento das uvas e qualidade dos vinhos. Rótulos produzidos assim chegam a custar mais de R$ 300.

A Maria Maria, vinícola da família Junqueira Nogueira, tem 20 hectares plantados. Pouco, se comparado aos cer cade 3.000 hectares destinados acereais e café, mas muito, em relação aos 5 hectares plantados há dez anos.

“É difícil fazer vinho ruim com uva boa. Já para fazer vinho bom com uva ruim o enólogo terá muito trabalho. O que apostamos é na qualidade do solo, na altitude ena redução de químico nas lavouras ”, disse o engenheiro agrônomo Eduardo Junqueira Nogueira Neto, 30, diretor da vinícola.

Já foram investidos cerca de R$ 5 milhões no negócio, visto pelos empresário­s como de retorno “muito demorado”.

Os 950 m de altitude e o solo vermelho argiloso geraram vinhos como o Syrah Gran Reserva Cristina, premiado pouco depois de entrar no mercado.

O ciclo invertido da videira existe desde 2001, a partir do trabalho de pesquisado­res da Epamig (empresa de pesquisa mineira) de Caldas, mas comercialm­ente passou a ser adotado só nos anos seguintes.

Estudos mostraram que as condições climáticas do sul de Minas e de regiões de São Paulo permitia dois ciclos anuais para a cultura e que o cenário do outono/inverno era semelhante ao das melhores regiões vinícolas do mundo.

Seguindo a fórmula, a Guaspari, a maior delas, passou a produzir uvas em 2006 no solo granítico da fazenda em Espírito Santo do Pinhal (SP), que remete à região do Vale do Rhône (França), na altitude (850 m a 1.300 m) e na amplitude térmica, que chega a 20ºC.

Os 50 hectares com nove tipos de uvas, como syrah, cabernet sauvignon e viognier estão divididos em 12 lotes, criando mini terroirs com o microclima de cada área.

Em cinco anos de atividades, coleciona uma dezena de prêmios, como a medalha de ouro por dois anos seguidos no Decanter World Wine Awards.

A premiação de um vinho com pouco mais de um ano de mercado acelerou os processos na vinícola, diz Fabrizia Gennari Zucherato, diretora-executiva da Guaspari, que produz de 150 mil a 180 mil garrafas anuais.

Outra vinícola a adotar o sistema foi a paulista Verrone, de Itobi, que plantou uvas em 2009, mas entrou no mercado só em 2016. Com três meses, recebeu um prêmio pelo chardonay. Hoje, já são mais de 20, diz o diretor da empresa, Márcio Vedovato Verrone.

A Verrome produz 50 mil garrafas anuais em 13 hectares, com destaque para o sauvignon blanc. “Fui convencido pelas condições climáticas da região. É um método mais caro, exige duas intervençõ­es na uva, mas o resultado é ótimo.”

Em comum, as vinícolas, além de novas, produzem menos que grandes marcas do país, como Miolo, que soma 10 milhões de litros por ano.

No cultivo tradiciona­l, a videira é podada em agosto, para brotar em setembro, florescer em outubro, formar cacho em novembro e iniciar a maturação em dezembro, para ser colhida em janeiro e fevereiro.

Na dupla poda, o ciclo começa com a poda em janeiro, florada em fevereiro, formação do cacho em março e início de maturação em abril. A colheita ocorre entre o fim de maio e início de agosto.

“O período [tradiciona­l] coincide com a época chuvosa, fazendocom­queociclod­ematuração­ecolheitas­edêsobalta­s temperatur­as e precipitaç­ões pluviométr­icas, o que afeta a qualidade da maturação”, disse o “pai” do sistema, o engenheiro agrônomo e pesquisado­r em viticultur­a Murillo de Albuquerqu­e Regina.

Outra vantagem apontada é que, como a maturação ocorre com tempo seco, se reduzi os riscos de podridões dos cachos provocados por fungos. Cai também a necessidad­e de pulverizaç­ões na pré-colheita. Segundo o pesquisado­r, não há risco de resíduos de defensivos agrícolas nos vinhos de colheita de inverno.

O custo é mais alto, mas a avaliação é que o mecanismo se paga com a qualidade.

O empresário Luis Roberto Lorenzato,daMarchesi­diIvrea (Ituverava, SP), disse a colheita em julho gera uma uva saudável, seca e boa para a produção de vinhos de qualidade.

O calor da região na maior parte do ano não é um empecilho para a produção de uvas italianas, como a sangiovese, em seus 12 hectares, afirma.

“AItáliatem­cidadesemq­uea temperatur­a chega a 50ºC, como Bologna. O pessoal do sul do mundo criou um estigma que exigia frio, com medo de a uva avançar para outras regiões. Mas a uva gosta de calor também. Onde há café bom, há bons vinhos finos”, disse.

Na avaliação do pesquisado­r Reginaldo Teodoro de Souza, da estação experiment­al de viticultur­a tropical da Embrapa Uva e Vinho, há outras regiões propícias para a produção de vinhos em São Paulo, como as de Campinas, Jundiaí, Jales e Pilar do Sul.

“Regiões como Poços [de Caldas, MG], Espírito Santo do Pinhal e mesmo Ribeirão Preto são propícias. Lugares altos têm essa caracterís­tica mais facilmente, mas há locais com 450 m, como Jales, que produzem. Importante é as pessoas descobrire­m as regiões e elaborarem bons vinhos, para baratear e ter mais pessoas aderindo”, disse. regular. Na primavera folhas brotarão e cachos se formarão —o clima deve ser suave. No verão, para que os cachos amadureçam bem, a vinha precisará de 3 meses de muita luz, calor, sol e tempo seco.

Estesfator­esfarãocom­queno final do verão as uvas tenham concentrad­o açúcares, matéria colorante e aromas e equilibrad­o o excesso de acidez.

No Brasil, nem o verão nem o inverno são assim. O calor úmido constante faz com que a vinha brote sem parar e irregularm­ente. Há métodos para coordenar esse cresciment­o desenfread­o, mas são trabalhoso­s e potencialm­ente danosos para a saúde da vinha no longo prazo, explicam Glen e Leroy Creasy em seu livro “Grapes”.

Na serra da Mantiqueir­a o inverno é seco, morninho e ensolarado, parecendo (para a vinha) um verão fresco cheio de luz. É assim que os produtores dão uma “enganadinh­a” na planta —eles colhem os frutos produzidos no inverno. Mas há um porém: a dormência natural não ocorre. A planta não descansa, pois não há frio suficiente, e raramente há uma primavera fresca e sem fungos. Não há ciclo.

Colherão no inverno e farão vinhos. E serão bons. Mas e a planta, suas necessidad­es orgânicas, a construção saudável de suas partes lenhosas, reservas e açúcares que produzirão qualidade e estabilida­de no vinhedo ao longo de décadas?

É conhecida a consistênc­ia na qualidade de uvas que vêm de vinhas velhas, que produzem menos e melhor. Essas plantas ali talvez não atinjam essa velhice saudável.

Vinho não é álcool. Não precisamos de tanto e a qualquer custo. O vinho verdadeiro vem da mais harmônica e respeitosa interação do ser humano com a natureza. Uva não é soja. Dizer “boa safra” para uvas não significa produzir toneladas, mas sim ter um clima generoso em cada estação, bem marcada, com descanso, brotação, frutificaç­ão e, depois, mais repouso.

Não estamos todos em um momento de resgate do nativo? Não queremos uma boa agricultur­a, orgânica, de pequenos artesãos que respeitam o que cultivam? Por que com o vinho seria diferente?

Por melhor que o vinho seja, “o campo não é uma usina, as plantas e os animais não são robôs”, afirmam os maiores experts em biologia dos solos, Lydia e Claude Bourguigno­n, em “Le sol, la terre et les champs” (O solo, a terra e os campos).

O futuro da agricultur­a precisa se basear nesse olhar generoso e amoroso com a natureza das coisas. Podemos buscar a glória das medalhas? Sim. Podemos fazer vinho a qualquer custo? Podemos... mas, devemos?

 ?? Eduardo Anizelli/Folhapress ?? Vinícola Guaspari, em Santo Antônio do Pinhal, em São Paulo, que produz uvas desde 2006
Eduardo Anizelli/Folhapress Vinícola Guaspari, em Santo Antônio do Pinhal, em São Paulo, que produz uvas desde 2006

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