Folha de S.Paulo

Corredor estreito

- Por Leonardo Weller Professor da FGV - Escola de Economia de São Paulo. Doutor em história econômica pela London School of Economics e pesquisado­r visitante da University College London (UCL) Ilustração Daniel Bueno Artista gráfico e professor da Ebac

Autores comentam a conturbada relação entre democracia e desenvolvi­mento

Autor comenta a conturbada relação entre democracia e desenvolvi­mento econômico, rejeitando a ideia de que Estados autocrátic­os favoreçam o cresciment­o; texto discute teses de ‘The Narrow Corridor’ (o corredor estreito), novo livro dos autores de ‘Por que as Nações Fracassam’

Uma onda autoritári­a está varrendo o mundo. Democracia­s que há pouco pareciam sólidas, como Polônia e Hungria, seguem o caminho rumo à ditadura. Trump e Bolsonaro investem contra instituiçõ­es democrátic­as, a Tailândia é regida por uma Constituiç­ão imposta por militares e as Filipinas têm um presidente sanguinári­o.

Até mesmo ditaduras se tornaram mais autocrátic­as: Putin converteus­e em uma espécie de novo czar russo e Xi Jinping aboliu restrições à reeleição que existiam na China desde a morte de Mao Tsé-tung.

Candidatos a ditadores geralmente argumentam que o autoritari­smo tem o poder de gerar desenvolvi­mento econômico. Para citar um membro do clã Bolsonaro: “Por vias democrátic­as, as transforma­ções que o Brasil quer não acontecerã­o na velocidade que almejamos”.

Fora a melhoria do padrão de vida da sociedade, é difícil pensar em alguma outra mudança que todos os brasileiro­s possam, juntos, querer. Mas será que a democracia é mesmo ruim para a economia?

O primeiro passo para responder a essa pergunta é entender o que é democracia liberal. O influente projeto Polity IV, do Center for Systemic Peace, baseado nos EUA, define países como democrátic­os quando há eleições livres e limpas, liberdades civis e um sistema de pesos e contrapeso­s que fortalece os Poderes Legislativ­o e Judiciário frente ao Executivo. Esse último ponto é fundamenta­l para evitar que arroubos autoritári­os por parte do governo comprometa­m as eleições e cerceiem as liberdades civis.

O Polity IV atribui pontos a países, em uma gradação na qual autocracia­s absolutas têm nota -10 e um grupo seleto de democracia­s maduras leva 10. Com nota 8, o Brasil é uma democracia incompleta, principalm­ente em função do excesso de medidas provisória­s.

A maior parte dos países desenvolvi­dos, com renda per capita e Índice de Desenvolvi­mento Humano (IDH) elevados, são democracia­s maduras. Entram no grupo Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão e quase toda a Europa Ocidental. As exceções são França, com 9, Coreia do Sul e EUA, ambos com 8, Israel, que leva 6 por causa da questão palestina, e Singapura, uma ditadura rica em uma cidade-estado. Os Estados Unidos foram rebaixados de 10 para 8 em 2016.

No entanto, a associação entre democracia e desenvolvi­mento econômico não significa necessaria­mente que autocracia­s não consigam crescer. A China é o caso contemporâ­neo mais notável em que houve cresciment­o sob um regime ditatorial. Chega-se, assim, ao seguinte paradoxo: a economia de algumas ditaduras cresce, porém quase todos os países ricos são democrátic­os.

Os dados são, por si só, inconclusi­vos quanto à relação entre sistema político e desenvolvi­mento econômico, pois há relativame­nte poucos países ricos e democracia­s maduras no mundo. Na linguagem dos economista­s, o número de observaçõe­s é baixo demais para se chegar a qualquer relação de causalidad­e.

Não sabemos, por exemplo, se democracia­s pobres enriquecer­ão ou se o Partido Comunista fará da China uma nação rica. Apenas com teorias baseadas na história podemos entender o impacto da democracia na economia.

Oeconomist­aturco Daron Acemoglu, do Massachuse­tts Institute of Technology (MIT), e o cientista político britânico James Robinson, da Universida­de de Chicago, são referência­s na formulação de teorias sobre desenvolvi­mento econômico.

A dupla parte da seguinte constataçã­o: a humanidade sempre viveu na pobreza, até que a economia britânica iniciou um processo sem precedente­s de cresciment­o no século 18. De lá para cá, o padrão de vida de praticamen­te toda a humanidade se elevou, mas alguns países se desenvolve­ram mais do que outros, fazendo com que a distância entre ricos e pobres tenha aumentado. A pergunta da dupla é a seguinte: por que houve cresciment­o em quase todo o mundo, mas apenas alguns países se tornaram desenvolvi­dos?

Em seu novo livro “The Narrow Corridor: States, Societies, and the Fate of Liberty” (o corredor estreito: Estados, sociedades e o destino da liberdade), lançado em 2019 e ainda sem tradução para o português, Acemoglu e Robinson respondem a esta pergunta em uma abordagem ambiciosa, na qual analisam a relação entre política e economia ao redor do mundo durante milênios.

Os autores vão de tribos no Havaí à China antiga, passando por cidades italianas medievais e chegando à Alemanha de Hitler e aos Estados Unidos de Trump, para citar apenas alguns casos. Fruto de dezenas de artigos acadêmicos, “The Narrow Corridor” tem fôlego suficiente para o enorme desafio a que se propõe. O livro é mais abrangente e definitivo do que o best-seller “Por que as Nações Fracassam” (Elsevier), lançado pela dupla no Brasil em 2012.

Os autores afirmam que o Estado é fundamenta­l para o desenvolvi­mento econômico. Durante milênios, sociedades sem Estado viviam em infindávei­s guerras ou, na melhor das hipóteses, estavam presas a estruturas tribais que garantiam alguma paz, mas limitavam a liberdade de iniciativa individual. Tanto guerras quanto tribos tolhiam o cresciment­o econômico. Não por acaso, atualmente os países mais pobres do mundo são os desprovido­s de Estados minimament­e funcionais.

No outro extremo, há sociedades regidas pelo Leviatã, termo usado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) para descrever Estados despóticos. O processo de construção desses Estados envolveu a destruição de vínculos tribais e a restrição de liberdades individuai­s, de modo que pessoas só podiam se organizar sob supervisão estatal.

Acemoglu e Robinson afirmam que o Leviatã pode gerar algum cresciment­o: a imposição de leis e o desapareci­mento de tribos unem e estabiliza­m espaços econômicos, benefician­do a produção e o comércio. Contudo o desenvolvi­mento tem limites sob este tipo de regime.

Cedo ou tarde, ditadores sucumbem à tentação de usar o poder para enriquecer a si mesmos e aos seus clãs. Invariavel­mente, ditaduras impõem regras arbitrária­s que criam instabilid­ade institucio­nal, inibindo o investimen­to em setores eficientes e o avanço tecnológic­o.

O livro descreve a ditadura de Eduard Shevardnad­ze, que pacificou a Geórgia após o colapso da União Soviética, mas que, em seguida, montou um Estado dedicado à corrupção. Na base da sociedade, os georgianos precisavam subornar funcionári­os públicos para levar a vida no dia a dia. No topo, Shevardnad­ze entregou empresas soviéticas a alguns poucos escolhidos, que usaram seu poder de monopólio para impor preços abusivos aos consumidor­es. Tudo era regulado por um sistema de propinas que enriqueceu o ditador e seu clã, mas que aumentou a desigualda­de e manteve o país na pobreza.

A previsão mais controvers­a de Acemoglu e Robinson é que o excesso de poder do Partido Comunista impedirá que a China se torne um país rico. As reformas do dirigente Deng Xiaoping, lançadas a partir do final da década de 1970, de fato tiraram centenas de milhares de chineses da miséria, mas isso ocorreu justamente graças ao enfraqueci­mento do Estado despótico criado por Mao.

A China ainda é uma autocracia que cerceia liberdades individuai­s: enquanto a elite política governa em benefício próprio, preservand­o laços entre os líderes políticos e os donos de grandes empresas, o povo não é livre para se comunicar, inovar e empreender.

A previsão mais controvers­a de Acemoglu e Robinson é que o excesso de poder do Partido Comunista impedirá que a China se torne um país rico. As reformas de Deng Xiaoping, lançadas a partir do final da década de 1970, de fato tiraram centenas de milhares da miséria, mas isso se deveu ao encolhimen­to do Estado despótico criado por Mao

Só democracia­s liberais encontram-se no corredor estreito, onde há equilíbrio entre Estado e sociedade. Estados fortes podem garantir a lei, proteger os pobres, construir infraestru­tura, educar e cuidar dos doentes. Mas só entregam de fato esses bens quando movidos por uma sociedade mobilizada em potentes grupos de pressão

Acemoglue Robinson afirmam que o desenvolvi­mento econômico sustentáve­l só ocorre dentro do que chamam de “corredor estreito”, no qual há um equilíbrio entre o poder do Estado e da sociedade. Para que países entrem nesse corredor, é fundamenta­l que a sociedade seja mobilizada o suficiente para controlar seus governante­s, gerando um Leviatã acorrentad­o.

O livro argumenta que sociedades europeias iniciaram um longo e tortuoso processo de controle de Estados despóticos graças à conjunção de duas tradições: o direito codificado romano e as assembleia­s de tribos nórdicas e germânicas. Um dos primeiros registros de tal iniciativa é a Magna Carta, de 1215, na qual o rei João da Inglaterra, conhecido como João Sem-Terra, se compromete­u a respeitar a liberdade de seus súditos e a cobrar tributos parcimonio­samente. A Magna Carta fracassou e terminou revogada. O poder real inglês só foi limitado no século 17, após décadas de guerras civis nas quais uma série de monarcas foram depostos e decapitado­s. A paz veio com a Revolução Gloriosa, que submeteu a Coroa ao jugo do Parlamento, sobretudo em assuntos fiscais. Os credores do Estado eram representa­dos na House of Commons, a Câmara baixa parlamenta­r, o que reduziu o risco de calote e, por consequênc­ia, o custo da dívida pública.

Em lugar de expropriar a sociedade com tributos pesados e arbitrário­s em tempos de guerras, como era prática comum na época, o governo passou a tomar emprestado da sociedade a juros baixos. Quando havia paz, a Coroa usava receitas tributária­s crescentes para pagar parte da dívida pública, mantendo-a em trajetória sustentáve­l.

Inspirados na tese lançada há 30 anos pelo prêmio Nobel de economia Douglass North, em coautoria com o também economista americano Barry Weingast, Acemoglu e Robinson afirmam que a Revolução Gloriosa condiciono­u a Revolução Industrial no século seguinte.

Ao limitar o poder do governo, o Parlamento reduziu o risco de expropriaç­ão, derrubando os juros na economia como um todo. O resultado foi um aumento sem precedente­s do investimen­to no campo e na nascente indústria, inaugurand­o o desenvolvi­mento econômico moderno.

Boa parte da Europa Ocidental e das ex-colônias inglesas desenvolve­u variantes do modelo constituci­onal britânico, com sistemas de pesos e contrapeso­s que limitavam o poder dos governante­s. Graças à democracia parlamenta­r, esses países universali­zaram o sufrágio masculino e começaram a assegurar liberdades civis entre os séculos 19 e 20. Após a Segunda Guerra, a democracia liberal lançou raízes sólidas em países até então autocrátic­os, como Japão e Alemanha, os quais entraram no seleto clube de democracia­s ricas.

Somentedem­ocracias liberais encontram-se no corredor estreito, no qual há equilíbrio entre Estado e sociedade. Estados fortes são capazes de garantir a lei e a ordem, proteger os mais pobres, construir infraestru­tura, educar os jovens e cuidar dos doentes. Mas o Estado só entrega efetivamen­te esses bens públicos quando movido por uma sociedade mobilizada em potentes grupos de pressão.

Segundo os autores, o fortalecim­ento do Estado e da sociedade gera um ambiente de respeito e confiança que garante a liberdade política e econômica de cada um. O resultado é o aumento do investimen­to e da inovação, gerando sociedades ricas, além de livres, inclusivas e democrátic­as.

No entanto a diversidad­e de interesses e ideologias dentro de cada sociedade faz com que o processo de amadurecim­ento democrátic­o seja tortuoso e, em alguns momentos, frustrante. Essa frustação, por sua vez, alimenta líderes autoritári­os que se propõem a resolver tudo “na marra”, deterioran­do ou mesmo destruindo a democracia.

Acemoglu e Robinson contrastam a União Soviética com a Polônia antes e depois da queda do Muro de Berlim. O Estado polonês reprimiu o sindicato Solidaried­ade que, contudo, logrou mobilizar a sociedade nos últimos anos do regime comunista. A abertura política, em 1989, enfraquece­u o Estado a ponto de equilibrá-lo com a sociedade. O Estado soviético, por sua vez, era demasiadam­ente forte para que as pessoas pudessem se mobilizar.

O fim do comunismo não enfraquece­u o Estado o suficiente para colocar a Rússia no corredor. A Polônia tornou-se uma nação desenvolvi­da, membro da União Europeia, enquanto a Rússia permaneceu um país de renda média controlado por Putin, um dos mais poderosos

do mundo.

No entanto, não há garantias de que países democrátic­os seguirão dentro do corredor. A ascensão do autoritári­o partido Lei e Justiça, que se reelegeu na Polônia em 2019, pode estar fortalecen­do o Estado e enfraquece­ndo a sociedade a ponto de conduzir o país para fora do corredor. E o Brasil?

O chamado “milagre econômico” ocorreu enquanto o AI-5 suspendia direitos civis e mantinha o Congresso fechado. Entretanto, ao contrário do que afirmam autoritári­os de plantão, a ditadura não fez bem à economia brasileira.

O cresciment­o daquela época teve como combustíve­l uma política salarial que puniu os mais pobres e o endividame­nto externo que gerou uma terrível crise na década de 1980. A economia entrou em recessão e a inflação saiu do controle enquanto o general Figueiredo ainda ocupava o Palácio do Planalto.

O cresciment­o brasileiro desde a redemocrat­ização é irrisório se comparado ao verificado sob o regime militar. Apesar disso, a democracia avançou considerav­elmente no combate à pobreza, na universali­zação da educação e no aumento da expectativ­a de vida.

Coligadas à alternânci­a pacífica de poder entre FHC e Lula, essas melhorias sociais levaram Acemoglu e Robinson a apresentar o Brasil como um candidato ao desenvolvi­mento econômico em seu livro anterior.

Infelizmen­te, a dupla estava errada: o país continua pobre e desigual. Apesar de não abordar o Brasil, “The Narrow Corridor” sugere conclusões diferentes das de “Por que as Nações Fracassam”.

Por um lado, o Estado brasileiro é o que Acemoglu e Robinson chamam de Leviatã de papel: ineficient­e e opressor, incapaz de proteger os mais fracos e promover o bem-estar de todos. Por outro lado, a sociedade é dividida por um enorme fosso entre classes sociais e estruturas hierárquic­as que subjugam negros, pardos, índios e mulheres. Enquanto o Estado brasileiro é de papel, a sociedade é incapaz de mobilizar-se cooperativ­amente a fim de exigir mudanças que conduzam o Brasil ao desenvolvi­mento econômico.

A desigualda­de social é a principal causa do subdesenvo­lvimento brasileiro. O Estado é mais ineficient­e e opressor para os mais desprivile­giados, que são justamente os mais desprovido­s de poder de mobilizaçã­o.

Os mais ricos podem até se esquecer de que vivem em um país pobre e desigual, mas a violência do andar de baixo costuma pôr fim a tal ilusão, no susto de um assalto, sequestro ou algo pior. Entretanto são os pobres que mais sofrem com a violência, inclusive a praticada pela polícia, agente do Leviatã de papel.

A desigualda­de também é o motor da polarizaçã­o política entre defensores da ditadura, que chegaram ao poder embalados por um delírio anticomuni­sta, e o lulopetism­o, cujos líderes utilizam a concentraç­ão de renda para justificar erros e negociatas praticados no passado recente.

Não há dúvida de que a democracia brasileira é falha, mas não há caminho fora do regime democrátic­o. Cabe à sociedade mobilizar-se para tornar o Estado menos opressor e mais eficiente.

Para isso, porém, é necessário que se reduza a imensa desigualda­de social e que se construam pontes entre grupos políticos e sociais antagônico­s. Só assim teremos um Estado potente e, ao mesmo tempo, acorrentad­o por uma sociedade mobilizada, condição necessária para o desenvolvi­mento econômico.

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 ??  ?? The Narrow Corridor: States, Societies, and the Fate of Liberty Autores: Daron Acemoglu e James A. Robinson. Editora: Viking. R$ 135,30 (capa dura, 560 págs.) ou R$ 54,90 (Kindle).
The Narrow Corridor: States, Societies, and the Fate of Liberty Autores: Daron Acemoglu e James A. Robinson. Editora: Viking. R$ 135,30 (capa dura, 560 págs.) ou R$ 54,90 (Kindle).

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