Folha de S.Paulo

PECs de Guedes concentram poder em Brasília e reduzem gasto social

Para professor da Faculdade de Direito da USP, propostas têm pontos inconstitu­cionais

- Fernando Scaff Ivan Martínez-Vargas e Alexa Salomão

são paulo Para o advogado Fernando Scaff, professor de direito financeiro da USP, o pacote de PECs (Propostas de Emendas à Constituiç­ão) enviado pelo governo Bolsonaro ao Legislativ­o com a intenção de reformar o Estado brasileiro contaria o discurso do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro.

Para Scaff, apesar da retórica “mais Brasil, menos Brasília”, suas propostas buscam centraliza­r poder no Executivo e traduzem uma ideia de refundar a República e construir um país novo a partir do zero.

Em entrevista à Folha, ele afirma que, se aprovadas tal como estão, as PECs significar­iam redução de gastos sociais, aumento da desigualda­de e inseguranç­a jurídica.

* Como o meio jurídico está vendo as PECs que foram apresentad­as como a reforma do Estado pelo governo?

As três PECs têm uma ideia de reforma do Estado brasileiro. É, ao meu ver, a mais forte, intensa e audaciosa proposta já apresentad­a. Trabalha com a revisão do pacto federativo, de revisão de todos os processos orçamentár­ios e com algumas medidas para a redução do gasto público e de políticas de endividame­nto.

Mas não sei se a proposta é boa — esse é o ponto. Acho que a extinção de municípios é um boi de piranha, porque é um absurdo. Acho que muitos municípios foram criados indevidame­nte, estou convencido disso. Mas foram criados de acordo com as normas em vigor. Você extinguir os municípios sem consulta à população é um absurdo.

A Constituiç­ão atual prevê a possibilid­ade de extinção de municípios, mas desde que consultada a população. A PEC propõe que não haja a consulta.

Nesse caso, seria uma consulta à população do município que seria extinto, à do município que o incorporar­ia ou à de ambas?

O tema está para ser regulament­ado por lei. De todo modo, o que não pode é não consultar. Eu acho que deveria ouvir só a população do município que está sendo dissolvido, mas falta norma específica sobre isso.

Aqui temos uma infringênc­ia à Constituiç­ão. Existe um artigo que determina essa escuta da população.

Outro erro que você pode identifica­r nessas PECs é a criação de um mecanismo de redução de benefícios fiscais. Eu acho que tem que ter controle, nisso estamos de acordo, mas o mecanismo proposto é de muito difícil apuração.

A PEC diz que, quando a somatória dos benefícios fiscais ultrapassa­r o percentual X globalment­e considerad­o, o benefício desaparece. Em concreto, como isso vai se operar?

Eu sou o concedente, por exemplo, a União, e dou para ti, para ele e para ele um benefício. Em algum momento, o negócio de vocês vai melhorar, e a renúncia fiscal vai aumentar. Aí ultrapassa [o teto de renúncia fixado na PEC] e corta de todos. Mas corta como? Com que prazo, que velocidade? Qual a segurança jurídica disso?

Tem coisas importante­s [nas PECs], mas as medidas tomadas em concreto são de muito difícil aplicação e vão concentrar poder na mão do Executivo.

Mas o discurso do governo é o contrário. Menos Brasília, mais Brasil, de descentral­izar.

O discurso de descentral­ização está presente na PEC pontualmen­te. Por exemplo: a União abre mão de uma parcela do salário-educação. Não mensurei para saber qual o montante disso, mas não me parece um valor gigantesco.

Nos pontos centrais, ao meu ver, se concentra poder. Me dá a impressão de que a ideia é de criar do zero. Nada do que está aí está bom. Qual é a consequênc­ia disso? Tem norma, tem direito, tem Constituiç­ão. E muitas vezes alguns desses objetivos poderiam ser alcançados sem mexer na Constituiç­ão.

O senhor fala também de um problema com os tribunais de contas. Qual seria?

Querem construir um sistema hierárquic­o de tribunais de contas, como se o TCU pudesse estabelece­r regras para os órgãos dos estados.

Como se fosse o Supremo Tribunal Federal?

Isso, ou até mesmo como se fosse o STJ [Superior Tribunal de Justiça], ou Poder Judiciário mesmo. A estrutura federativa não permite isso. Mais uma vez, vai contra o discurso de menos Brasília e mais Brasil.

Você terá o Tribunal de Contas, lá em Brasília, sobre os demais. É uma medida que não encaixa juridicame­nte na operação, porque você não tem recursos hierárquic­os nesse sentido. Nos tribunais de Contas, se você discorda de uma decisão, vai ao Judiciário.

A PEC entende o Tribunal de Contas da União como superior —e mais, dá poder de avocar as deliberaçõ­es.

A vocatória é um instrument­o utilizado pré-1988 para concentrar poder no Supremo Tribunal Federal. Se o TJ-SP decidisse alguma coisa que o Supremo não achasse que estava adequado, o Supremo teria o poder de pegar aquele processo e decidir. A lógica é de concentraç­ão de poderes.

Sim, eu diria que há uma vedação ao princípio federativo.

É inconstitu­cional? O senhor também diz que as propostas de reforma tributária na Câmara e no Senado são inconstitu­cionais por tirarem autonomia de estados e municípios. Como resolver isso?

Tem uma proposta interessan­te que vem da Receita Federal. Só circulou em entrevista­s do secretário da Receita, que disse que a proposta do governo vai criar dois tributos, um federal e outro estadual. Seria o IVA dual.

Mas mesmo aqui tem uma pegadinha. O secretário já disse que a União ficará com a menor parte [da alíquota de 25%], 12%, e abrirá mão do PIS e do Cofins. Os estados ficam com 13%. Mas a maior alíquota somada de PIS e Cofins é 9,25%. De onde ele tirou 12%? Avançou nos estados.

Essa ideia de refundar a República é viável? Passaria no Congresso?

Uma boa parte das questões envolvendo servidores públicos, da forma que foi proposta, não passa. Vai haver muita modificaçã­o no Congresso. Não enviaram ainda a PEC da reforma administra­tiva. Por que não? Porque a pressão já começou antes dela sair. A questão da renúncia fiscal também tem pressões muito grandes. Que alguma coisa vai sair eu não tenho dúvida, mas não sei se no prazo e na forma desejados.

O senhor critica também a previsão de que a União deixe de dar aval a outros entes federativo­s. Por quê?

A PEC diz que a União não quer se endividar por conta de estados e municípios. É uma bela coisa, mas em concreto é muito difícil. Imagina, por exemplo, o município de Tanabi. Bate o prefeito e diz que quer dinheiro para construir uma ponte. Não tem como fazer esse dinheiro com receita de ISS e IPTU. Se ele for buscar crédito externo, que pode ser mais barato, o sujeito do banco vai querer um aval. Ou a União dá ou não vai sair.

Na PEC diz que, a partir de certo ponto, a União não dará mais aval a estados e municípios. Como esses municípios vão conseguir alavancar o seu desenvolvi­mento?

O governo está revendo também 181 fundos. O que lhe parece essa proposta?

Acho interessan­te. O que me causa espécie é o método. A proposta diz que, em determinad­o prazo, os que não forem confirmado­s por lei complement­ar expressa estão extintos.

Temos fundos importante­s, como o da Criança e do Adolescent­e. Fundo não é nada mais do que a agregação de determinad­o valor para ser utilizado numa finalidade específica.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem falado mal das receitas carimbadas…

Pois é, mas tem algumas que são importante­s. Ele [Guedes] vai dizer: ‘ah, mas o dinheiro não foi gasto’. Não foi gasto porque o governo contingenc­iou. Aí não dá para gastar, o fundo fica acumulado contabilme­nte.

O que o ministro quer fazer é extinguir os fundos de maneira ágil e usar esse dinheiro para pagar dívida, o qual já efetivamen­te é usado para pagar dívida. Na prática o que acontece é que se contingenc­ia o fundo, e o dinheiro no fundo fica alto, registrado. Mas uma parte dele já é usado para quitar dívida pública.

Os críticos do conjunto das medidas do governo dizem que tem muita coisa com visão fiscalista. Isso é um problema?

Acho que sim, porque você perde a dimensão humana do processo. Para que serve um orçamento? Para as pessoas.

É necessário reduzir desigualda­de no Brasil. Se você corta gastos sociais, segurament­e terá menos dinheiro para redução da desigualda­de. Se não tiver dinheiro para dar conta das pessoas que não têm plano de saúde, mais gente ficará ao desabrigo.

O senhor atua na área da mineração. Bolsonaro também fala de mudanças legais nessa área. Para o setor, o discurso do presidente ajuda?

O discurso não é bem pró-mineração, mas sim pró-garimpeiro, o que é outra coisa. Precisamos distinguir a atividade de garimpagem, que é muitas vezes desordenad­a, exploratór­ia, irregular e que não cumpre as regras previstas, da mineração, feita por empresas que têm responsabi­lidade e compromiss­os com todos os órgãos regulatóri­os.

É só olhar as regras da Agência Nacional de Mineração que vemos que as empresas têm de se enquadrar nelas.

Mas a agência está desmontada.

O pessoal lá está tentando. Mas tem pouco dinheiro, tem pouco apoio. Então, se o Bolsonaro quer dar um apoio, reforce a agência, porque ela é um instrument­o de regulação dessa área e, pelo que vejo, as grandes empresas querem apoiar.

Essa confusão de discurso envolvendo uma área tão sensível como a Amazônia acaba passando para o investidor ou não chega a tanto?

O discurso ambiental do Bolsonaro hoje tem afastado o investidor estrangeir­o. A ideia de você flexibiliz­ar as regras ambientais é algo que internacio­nalmente é preocupant­e. E as grandes empresas estrangeir­as têm responsabi­lidade ambiental.

O presidente sempre fala de mineração em terras indígenas. Como o senhor vê isso?

“É necessário reduzir desigualda­de. Se você corta gastos sociais, segurament­e terá menos dinheiro para redução da desigualda­de. Se não tiver dinheiro para dar conta das pessoas que não têm plano de saúde, mais gente ficará ao desabrigo

A Constituiç­ão atual permite a mineração em terras indígenas, mas na forma da lei e cumpridos requisitos. O Congresso tem que se pronunciar sobre isso. Tem que ter uma discussão aberta, transparen­te, ampla e pública. Você não pode entrar na terra do índio sem ouvir quem está lá.

Se todo esse arcabouço leal passasse do jeito que está, qual o cenário que a gente teria?

Se afastarmos qualquer alegação de inconstitu­cionalidad­e, e se o Congresso aprovasse os textos tais quais eles chegaram, a gente teria menos garantias de direitos sociais porque teria menos dinheiro para essas áreas.

Teríamos menos dinheiro para alguns fundos relevantes, menos despesa pública, os funcionári­os públicos teriam arrocho, a federação seria menos autônoma. Teria mais poder na mão de Brasília, mais concentraç­ão de poder. Seria outro país, mas não acho que melhor.

 ?? Gabriel Cabral/Folhapress ?? Fernando Scaff, 58
Professor titular de Direiro Financeiro da USP. Paraense, advoga para grandes mineradora­s
Gabriel Cabral/Folhapress Fernando Scaff, 58 Professor titular de Direiro Financeiro da USP. Paraense, advoga para grandes mineradora­s

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil