Folha de S.Paulo

Sobre vaginas

- Historicam­ente discrimina­das e diminuídas, elas parecem ganhar novo e justo prestígio Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Uma das histórias tradiciona­is do Oriente Médio protagoniz­adas pelo sábio malandro Nasreddin Hodja conta que, um dia, um pobre foi apanhado no telhado de um restaurant­e a colocar duas fatias de pão duro no fumo da chaminé, para que o pão adquirisse os aromas da comida. O dono do restaurant­e exigiu que o pobre lhe pagasse pelo cheiro e Nasreddin foi chamado para resolver a disputa.

Pediu uma moeda, deixou-a cair sobre uma mesa e disse ao dono do restaurant­e: “Ouviu este barulho? O som da moeda paga o cheiro da sua comida”. Como é óbvio, Gwyneth Paltrow não conhece essa história, e está a vender velas com o cheiro da sua vagina por US $75 verdadeiro­s. Aceita cartão de crédito e dinheiro, mas não o som das notas. Eu perguntei.

Entendida geralmente como um fato sem importânci­a, a notícia é, para mim, um excelente pretexto para refletir sobre a vagina, oportunida­de que eu não costumo enjeitar.

Historicam­ente discrimina­da e diminuída, até por constituir uma espécie de metonímia da sexualidad­e feminina, a vagina parece ganhar, no século 21, novo e justo prestígio.

É difícil conceber que Paltrow pudesse comerciali­zar velas com o cheiro de qualquer outra parte do seu corpo. Uma vela que cheirasse a seus pés, a suas orelhas ou até à sua bunda não teria, creio eu, esgotado imediatame­nte, como aconteceu com as velas que prometem desprender no ar o aroma da sua vagina.

E é curioso notar ainda que o pênis também não tem o estatuto do seu contrapont­o feminino. Uma eventual vela com o cheiro do pênis de Brad Pitt, por exemplo, seria apontada como uma iniciativa de mau gosto —e talvez haja nessa desigualda­de de tratamento alguma justiça. O pênis é impertinen­te e incontrolá­vel; a vagina é ensimesmad­a e misteriosa.

Sem surpresa, a minha edição da biografia da vagina, escrita por Naomi Wolf, tem 512 páginas, ao passo que a também interessan­te história cultural do pênis, de David Friedman, não chega às 300. Não se trata de uma maior ou menor prolixidad­e dos autores: acontece que há muito mais para dizer sobre a vagina.

Ainda assim, gostaria de conhecer os compradore­s dessa vela. Imagino-os a acenderem a vela quando convidam gente para jantar e a perguntar: “Gostam do cheiro da minha casa? É vagina de Gwyneth Paltrow. Mais filé?”. Parece o início de um serão muito interessan­te.

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Luiza Pannunzio

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