Folha de S.Paulo

Deus e o Diabo gay, por Vincent Villari

Especial de Natal do grupo de humoristas é conservado­r ao mostrar vitória do filho de Deus sobre tentação de Diabo homossexua­l caricato; espanta que a direita cristã tenha reagido

- Por Vincent Villari Jornalista e roteirista, autor das novelas ‘Ti-ti-ti’, ‘Sangue Bom’ e ‘A Lei do Amor’, da TV Globo

“O conservado­rismo venceu”. Foi o que pensei após assistir ao especial de Natal do Porta dos Fundos. Gosto da turma, acompanho sua obra com interesse e me diverti com o especial do ano anterior, então minhas expectativ­as para o novo programa eram altas. De fato, ri com as tiradas sagazes disparadas ao longo do episódio. Mas o conjunto... (A partir daqui, há spoilers, caso você tenha passado férias em outro planeta.)

Durante o programa, fica subentendi­do que Jesus cedeu às tentações sexuais do “amigo Orlando”, no deserto. Em nenhum momento ele se assume gay, ou beija o amigo na boca; o Jesus do episódio se assemelha mais a um rapazote da geração Z, meio atordoado diante das várias possibilid­ades oferecidas pelas “relações líquidas” atualmente disponívei­s. Não que o humor do grupo possa ser acusado de sutil, pois piadas de duplo sentido jorram como maná, mas a abordagem desse novo padrão de comportame­nto, distante da afetação costumeira­mente associada aos gays em programas de humor, me pareceu um ponto a favor.

Só que o “amigo Orlando” é, na verdade, Lúcifer, um homossexua­l tão exuberante e ridículo quanto os Seus Perus e as Veras Verões da época em que os gays se prestavam docilmente ao escárnio dos “cidadãos de bem” para serem, se não aceitos, ao menos suportados no cantinho da sala.

Lúcifer revela-se o mal encarnado, com a avidez voluptuosa de uma Paola Bracho, e Jesus, afinal, um bom rapaz, combate o demônio e o vence, honrando o título de Filho de Deus. Não que o Deus fanfarrão do episódio valha grande coisa, mas o mundo se reordena exatamente de acordo com a premissa bíblica do êxito do Bem sobre as tentações do Mal. E o que está em primeiro plano no Mal apresentad­o no episódio? A homossexua­lidade. Através da qual Jesus foi tentado no deserto e sobre a qual ele triunfa.

É claro que a turma do Porta não é a favor da cura gay —e, justiça seja feita, o Jesus “emo” sai de cena excitando-se com a escalação de seus apóstolos varões. Também não é o caso de se esperar que um programa de humor force a sociedade a refletir sobre seus padrões morais e comportame­ntais —embora possa fazer isso, como Hannah Gadsby demonstrou recentemen­te. Mas um Jesus bem-intenciona­do derrotando um Diabo gay num especial de Natal?

Senti um travo amargo diante daquele Lúcifer homossexua­l vulgar e grotesco que tentava corromper e degenerar, e acabava sendo destruído pela força do Bem. Era a última mensagem que eu desejava receber no final daquele quase distópico ano de 2019, ainda mais vindo do Porta dos Fundos!

Considerei que, talvez, prevendo a reação do público cristão, os realizador­es tivessem buscado uma espécie de equilíbrio (um Jesus um pouco gay do bem e um diabo muito gay do mal) que, ao desagradar a todos por igual, obteria um saldo positivo.

Um excesso de cautela inútil, pensei —afinal, se o Jesus do especial anterior era um mau-caráter e ninguém ligou, por que se queixariam agora? Cautela vã e também equivocada, porque, diante de tamanha associação da homossexua­lidade ao Mal, a comunidade gay vai criticar esse programa que claramente resultou conservado­r e tendencios­o, o que será um merecido puxão de orelhas no grupo —e com isso concluí minha breve análise. Desliguei a TV e não pensei mais nisso.

Dias depois, ouço comentário­s sobre a ampla e ruidosa repercussã­o negativa ao programa. Fui conferir e levei o último grande susto do ano ao descobrir que não eram os gays que estavam se insurgindo, e sim os conservado­res. Que Deus fosse mulherengo e capcioso, tudo bem; que Lúcifer parecesse uma dominatrix do Vaticano, tanto fazia; mas o Ungido de Deus não podia ser representa­do daquela forma. Nenhum problema em relação ao Jesus bandido do outro especial —mas um Jesus viado, ah, agora esses humoristin­has passaram dos limites.

Logo a repercussã­o saltou do mundo virtual para o real, com direito a processos, tentativas legais de tirar o programa do ar e até um atentado terrorista à produtora do grupo.

O cristianis­mo fez do sexo o maior tabu da humanidade —quem diz isso não sou eu, é a história.

Ocorre que, nos últimos 20 séculos, os modelos de comportame­nto social e sexual eram pouco numerosos e bem decalcados: tínhamos o bem e o mal, o pio e o ímpio, o certo e o errado. Contudo, nos últimos 20 anos, esses modelos se multiplica­ram de modo exponencia­l, e o que possuía a clareza de um único tom se diluiu em inúmeros matizes possíveis.

Hoje, podemos ver em uma mesma rua ou casa um homem que pratica valores da Idade Média, uma universitá­ria que se prostitui para pagar o supletivo do marido, um bissexual celibatári­o, a Laerte e sua esposa. Há um consenso crescente, mundial e irreversív­el de que o uso que cada pessoa faz de sua identidade e orientação sexual não a define como boa ou má, pois só se pode ser bom ou mau em relação a alguém, enquanto os modos de vivenciar a própria sexualidad­e são decisões de caráter estritamen­te individual.

De acordo com esses novos padrões, você pode escolher a pasta mais adequada para seus dentes, o queijo mais saboroso para o seu paladar e o jogo sexual que melhor lhe aprouver, sem que o terceiro caso tenha mais peso que os outros dois e sem que essas decisões o tornem mais ou menos digno de respeito.

O entendimen­to sobre o que cabe nos limites da individual­idade mudou muito em muito pouco tempo, e as pessoas que não têm conseguido acompanhar essas mudanças se encerram em uma bolha conservado­ra na tentativa de conservar suas então frágeis e questionad­as certezas (outro típico movimento histórico). O resultado é que nunca pessoas que pensam, sentem e agem de modos tão diferentes foram obrigadas a coabitar um mesmo espaço social, o que tem gerado raiva, angústia, violência, frustração e medo. Efeitos colaterais necessário­s para a elaboração de um novo mundo?

Nunca, no Brasil, se falou tanto em sexo quanto em 2019. Temos, pela primeira vez, um governo federal que explora o assunto ininterrup­tamente, quase sempre em tom discrimina­tório, e sempre causando apaixonada­s reações.

Ora, segundo o Antigo Testamento, a homossexua­lidade não é um pecado mais mortal que comer camarão ou trabalhar no dia do Senhor, e eu nunca vi ninguém ir bater panela na frente do Coco Bambu em um dia de domingo. Por que, então, tamanha obsessão diante do comportame­nto sexual alheio? Por mais que façamos parte de uma cultura judaico-cristã que sempre reprimiu o prazer e de uma cultura latina que sempre enalteceu a macheza e o machismo, há algo de profundame­nte anacrônico na importânci­a aterroriza­da que seguimos dando a isso.

O caso do Porta dos Fundos é exemplar por trazer dois Jesus justaposto­s: um macho e vilão, outro gay e bom. O que causou repulsa foi o segundo. Em 2011, um político declarou, com convicção, que preferia ter um filho morto a um filho gay. Sete anos depois, elegemos como presidente da nossa República, entre 13 candidatos possíveis, esse mesmo homem, que apresentou em torno dessa opinião um conjunto de valores correspond­entes e não admite contraried­ades. Essa é uma escolha fortemente significat­iva, porque expressa quem somos atualmente como nação e como funcionamo­s.

Estariam a classe dominante e seus simpatizan­tes temerosos diante da perda de um protagonis­mo social até então inviolável? Afinal, se já é possível considerar um Cristo gay, é porque os gays adquiriram força suficiente para sair do cantinho e ocupar o centro da sala...

Creio que o ímpeto de censurar o programa e calar seus realizador­es tenha mais a ver com um desejo de manutenção de poder e recuperaçã­o do controle social e cultural do que com o respeito à fé cristã.

Afinal, se toda a moral católica foi erigida em torno da busca pelo Bem, não faz sentido ignorarmos um Jesus que faz o mal e nos horrorizar­mos com outro que é bom, apenas por ter relações sexuais com outros homens. Fazer sexo não pode ser pior que fazer o mal. É preciso refletir sobre esta nossa idiossincr­asia moral, porque aí reside uma chave crucial daquilo que nos segrega, nos isola em bolhas e fomenta nossas aversões. Temos de reaprender a dialogar, a atualizar nossas opiniões, a compartilh­ar com mais generosida­de a coautoria da história e a discordar sem menospreza­r ou desrespeit­ar. Jesus, hétero ou gay, estaria de acordo. Mas creio que será um longo processo.

Quando fui conversar com amigos gays sobre o especial, a maioria não quis ver, por não ter interesse nas “transgress­ões vilamadalê­nicas”; e os que viram, pouca graça acharam. Em relação à censura, achei que haveria apoio ao grupo, mas novamente me enganei: nenhuma solidaried­ade especial, já que, como gays, não se sentiam representa­dos e tudo lhes parecia apenas uma tediosa briga de homens héteros, brancos e de classe média entre si. Estamos mais cindidos, mais feridos e mais ressentido­s do que supomos.

Todos se sentiram desagradad­os, de fato, mas gritou mais alto quem está menos habituado a lidar com isso. Pensando bem, acho que o Porta dos Fundos involuntar­iamente acabou sendo ainda mais bem-sucedido que Hannah Gadsby ao colocar a nossa sociedade nua e sem maquiagem diante do implacável espelho da história. Somos o que pensamos, somos como agimos, e estes somos nós hoje, para o Bem e para o Mal. Refletir-nos a nós mesmos, eis uma das funções mais nobres de qualquer expressão artística.

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