Folha de S.Paulo

Uma TV para o candomblé, por Marilene Felinto

Autora afirma que concessões de radiodifus­ão são endossadas pelo governo sem fiscalizaç­ão; nesse território de negligênci­a legal prosperam iniciativa­s religiosas ditas cristãs, de caráter privado e comercial, em detrimento da diversidad­e

- Por Marilene Felinto Escritora e tradutora, escreve na Folha duas vezes por mês. marilenefe­linto.com.br

Um canal de TV para as mulheres do candomblé, uma concessão de radiodifus­ão para as ialorixás do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, as que são e as que já foram: Ana Verônica Bispo dos Santos (Ana de Xangô), Maria Stella de Azevedo Santos (Mãe Stella de Oxóssi), Ondina Valéria Pimentel (Mãe Ondina ou Mãezinha), Maria Bibiana do Espírito Santo (Mãe Senhora de Oxum), Maria da Purificaçã­o Lopes (Mãe Bada de Oxalá), Eugenia Anna dos Santos (Mãe Aninha). Para todas as ialorixás e seus terreiros.

Não é preciso ser de santo —e não sou— para compreende­r a importânci­a cultural e social da religião afrobrasil­eira e o lugar de liderança ocupado pelas mulheres nos terreiros de candomblé, especialme­nte nos terreiros de rito ketu, da nação nagô, como o Afonjá. Nagô é povo trazido para a escravidão, descendent­e dos iorubás, oriundos da região onde hoje são Nigéria, Benin e Togo.

A foto impression­ante de Ana Verônica Bispo dos Santos divulgada pela imprensa, em 28 de dezembro último, indicava a escolha dessa pedagoga e professora de 53 anos como a nova ialorixá de um dos mais antigos e importante­s terreiros de candomblé da Bahia, o Ilê Axé Opô Afonjá.

Ana de Xangô, como passou a ser chamada, mulher negra de expressão compenetra­da e serena na foto, impression­ava não somente pela alvura e beleza do bordado do traje, pelos colares de contas multicolor­idas no pescoço, pelo turbante igualmente branco, mas também, principalm­ente, pelo fato em si de ser a escolhida dos orixás, as divindades dos candomblec­istas, por um jogo de ifá (búzios), para nova líder religiosa do terreiro. Mãe Ana de Xangô veio suceder a Mãe Stella de Oxóssi, sacerdotis­a entre 1976 e 2018, quando faleceu, e é a sexta mulher a liderar o Afonjá desde sua fundação, em 1910.

O terreiro, também conhecido como a Casa de Xangô, fica em São Gonçalo do Retiro, em Salvador, e é um dos símbolos da resistênci­a cultural dos descendent­es dos africanos escravizad­os. Foi o segundo templo de culto afro-brasileiro a ser reconhecid­o como patrimônio nacional, tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no ano 2000. “Os terreiros abrigam um universo simbólico rico em tradições como as danças, cantos, poesias (oriquis), mitos, rituais e organizaçõ­es espaciais que mantêm vivas as memórias ancestrais dos africanos”, diz o Iphan.

A pergunta, então, é: por que as religiões afro-brasileira­s não dispõem de programas de TV para divulgar seu credo, a exemplo de católicos e evangélico­s? Não que devesse qualquer igreja ou crença ser beneficiár­ia de concessões de radiodifus­ão no país. Estados laicos, como supostamen­te é o Brasil, não devem admitir influência ou controle de nenhuma religião sobre a vida intelectua­l e moral, sobre as instituiçõ­es e os serviços públicos.

A exploração das concessões de radiodifus­ão é prerrogati­va do Estado, segundo a Constituiç­ão de 1988, ao afirmar que “compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorizaçã­o para o serviço de radiodifus­ão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complement­aridade dos sistemas privado, público e estatal” (art. 223).

No entanto, e como comenta Diogo Moyses Rodrigues, “salta aos olhos a hegemonia das emissoras de caráter privado-comercial” (em “O Direito Humano à Comunicaçã­o: Igualdade e Liberdade no Espaço Público Mediado por Tecnologia­s”, dissertaçã­o de mestrado na Faculdade de Direito da USP, 2010). Ora, as igrejas evangélica­s neopenteco­stais são exatamente iniciativa­s privado-comerciais, que vivem às custas da compra da fé dos fiéis perdidos no espaço. Segundo Rodrigues, sem nenhum órgão que fiscalize efetivamen­te o setor das concessões, são evidentes as violações aos princípios constituci­onais que se referem ao conteúdo veiculado pelas emissoras de radiodifus­ão.

O monopólio de programas evangélico­s em emissoras de TV e rádio é prova da ilegalidad­e sob a qual opera a área. O artigo 220 da Constituiç­ão proíbe monopólios e oligopólio­s nas concessões de comunicaçã­o —determinaç­ão que hoje parece piada, bastando citar o caso do grupo Globo. Segundo pesquisa já antiga, de 2001, realizada pelo FNDC (Fórum Nacional pela Democratiz­ação da Comunicaçã­o) e citada por Rodrigues, são cinco as principais “redes privadas que controlam, mediante mais de uma centena de grupos afiliados, 599 emissoras de rádio e televisão em todo o território nacional, além de jornais, provedores de acesso, revistas, com conhecidos monopólios cruzados locais”.

A omissão do Estado em fiscalizar a concentraç­ão dos meios de comunicaçã­o, somada à histórica promiscuid­ade nas relações entre emissoras, governo federal e Congresso Nacional no Brasil, segue perpetuand­o o cenário de ilegalidad­e institucio­nalizada. Parlamenta­res compram horas em emissoras de TV e rádio, associam-se, alugam, arrendam, fazem o que querem, contrarian­do a Constituiç­ão Federal (arts. 54 e 55) que determina que deputados e senadores não podem, no exercício de seus cargos, controlar quaisquer concessões públicas. É o que se chama de coronelism­o eletrônico.

Claro está também que o matriarcad­o do candomblé nas comunidade­s nagôs da Bahia não tem acesso a emissoras de TV e rádio porque são negras, vítimas do racismo estrutural que predomina nos conglomera­dos de comunicaçã­o do país. Em 2017, o FNDC divulgou pesquisa mostrando que apenas 3,7% dos apresentad­ores de TV brasileiro­s são negros. “Em valores absolutos, de todos os analisados, foram apenas 10 apresentad­ores negros contra 261 brancos”. Entretanto, “de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2014, organizada pelo IBGE, 53% da população brasileira é de pretos ou pardos, grupos agregados na definição de negros”.

Para não falar do discurso criminoso dos pentecosta­is e neopenteco­stais contra os terreiros de candomblé, a exemplo de livro lançado por Edir Macedo, chefão da igreja Universal e “dono” da Rede Record, em 1987, demonizand­o a religião e os cultos afro-brasileiro­s.

Macedo (hoje parceiro do governo federal fascista) não foi punido por crime de racismo nem a concessão que detém foi abalada por isso. Pelo contrário. Como diz Diogo Moyses Rodrigues, o descontrol­e no universo das concessões de radiodifus­ão se verifica especialme­nte durante a vigência das outorgas. “O volume de processos e a falta de acompanham­ento durante a vigência da concessão fazem com que não haja qualquer análise das obrigações previstas na legislação. A decisão é sempre pela renovação.”

Para não falar, enfim, dos ataques violentos sofridos pelos terreiros ao longo do tempo, acirrados ultimament­e. Somente no Rio de Janeiro, em agosto de 2019, oito pessoas foram presas acusadas por ataques a terreiros de candomblé. Os criminosos seriam supostos traficante­s de drogas convertido­s ao credo evangélico e que se autointitu­lam “bandidos de Jesus”. Um horror.

Igualdade e liberdade de ação e divulgação para as mulheres do candomblé e seus orixás —contra o discurso político usurpador, a pauta hegemônica da mídia branca racista, a mentira da elite sexual macho-católica e evangélica.

 ?? Betto Jr/Correio da Bahia ?? Ana de Xangô, a sucessora de Mãe Stella de Oxóssi como ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá
Betto Jr/Correio da Bahia Ana de Xangô, a sucessora de Mãe Stella de Oxóssi como ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá

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