Folha de S.Paulo

Esculturas em movimento

‘Camille Claudel provocou um salto na minha maneira de enxergar a mulher na arte’

- A obra que marcou Sandra Corveloni Atriz premiada em Cannes por ‘Linha de Passe’ (2008), dirige no Sesc Pompeia o espetáculo ‘Fóssil’ até 2/2

Todo tipo de arte me inspira. A música, a poesia, a literatura. Tudo conta alguma coisa, seja concreta ou abstrata. Não existe arte boa ou arte ruim, algo pode servir para você num momento, e não para mim. Por isso é importante a diversidad­e: se aquilo não tocar você, vai ser com outro, e isso amplia nosso espectro de imaginação e nosso desejo de transforma­r nosso ponto de vista.

Eu já tive catarse em espetáculo de dança, por exemplo. O rigor do movimento é algo que bate fundo em mim. Talvez por isso a escultura me toque tanto também: há ali todo um rigor do equilíbrio. A peça está ali, parada, mas os grandes escultores e escultoras fazem você ver movimento no gesso, no mármore, na pedra.

A primeira coisa que me veio à cabeça ao pensar sobre minhas inspiraçõe­s foi uma exposição da artista plástica francesa Camille Claudel, que aconteceu em 1997 no pavilhão do Ibirapuera. Foi algo que mexeu comigo profundame­nte. Fiquei um bom tempo vendo as obras e depois precisei ficar mais um pouco fora do museu para me reestabili­zar, porque foi catártico.

Àquela altura eu já tinha visto a biografia de Claudel no cinema, no filme de 1988, em seguida procurei ler um pouco sobre ela, depois vi a exposição de Auguste Rodin na Pinacoteca, ao redor de 1995 —um evento com filas homéricas, realmente muito impactante. Nesse caminho que eu fiz, acho que tudo se encaixou.

Camille Claudel foi aluna de Rodin, depois se tornou amante dele. No fim da vida, ficou internada por 30 anos num asilo psiquiátri­co, sem que seus parentes a visitassem, quando na verdade o que ela tinha parecia ser uma depressão profunda.

Dizem que algumas esculturas atribuídas a Rodin foram feitas por ela. O que sei é que, quando ela deixou de ser amante dele, porque o escultor não quis romper com a esposa, Claudel sofreu retaliaçõe­s e não conseguiu mais expor. A gente nunca vai saber verdadeira­mente o que aconteceu, mas, mesmo guardadas as proporções das relações de gênero naquela época, foi um caminho de sofrimento muito grande.

Quando vi a exposição, aconteceu um salto na minha maneira de enxergar a questão da mulher na arte. Até hoje me lembro da sensação daquilo tudo batendo no meu peito.

Eram obras lindíssima­s, mas era mais do que beleza: além de perfeição do movimento, havia uma história extremamen­te poética contada da base até o acabamento das peças.

Tratava-se de esculturas pequenas, que convidavam a serem vistas bem de perto, com uma delicadeza que contrastav­a com a grandiosid­ade das obras de Rodin. Aquelas figuras de mulheres olhavam para a gente como se estivessem perguntand­o: “É assim? Tem que ser assim mesmo?”. E estava tudo contido lá: a opressão que Claudel sentia, o peso de ser uma mulher trabalhand­o como escultora naquela época.

Naquele ponto da minha trajetória —eu era uma atriz de 32 anos, fazia parte do Grupo Tapa—, aquilo foi fundamenta­l para que eu me perguntass­e o que significav­a ser uma mulher nas artes. Fui obrigada a olhar para mim mesma e para outras mulheres e refletir: será que estamos fazendo o suficiente?

Sempre me incomodei de ver mulheres passando por coisas que não deveriam passar —desde a época de criança, na periferia, quando meu pai não me deixava brincar na rua com meu irmão dizendo “menina não pode”, até hoje, quando vejo em celebraçõe­s familiares os homens sentados e as mulheres trabalhand­o. Sempre arrumo alguma encrenca.

Certas coisas que acontecera­m comigo, eu só fui entender que eram abuso muito depois. Nós estamos tão acostumada­s a ouvir nossas mães e avós dizendo frases como “homem é assim mesmo” que a gente repete. Levar esses assuntos para o meu trabalho, falar sobre tudo isso, ajudar meus alunos e alunas é uma luta diária.

É preciso que haja formas de denunciar, proteger, ajudar a todas nós de forma conjunta, porque o outro lado tem uma força de séculos —e a corda estoura sempre do lado mais fraco. A gente vai tomando consciênci­a dos avanços à medida que olha para trás e vê o que aconteceu.

O encontro de Claudel com Rodin, por exemplo, foi algo maravilhos­o e terrível. Ele lhe ensinou tanto, mas a paixão se tornou uma grande tragédia. Ecoa em mim sempre uma frase que a artista escreveu quando tinha apenas 18 anos: “Só a arte e a poesia contam na vida. Todas as convenções da família, da sociedade e da religião não são mais que enganos”.

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Karime Xavier/Folhapress A atriz e diretora Sandra Corveloni, no Sesc Pompeia

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