Folha de S.Paulo

A tragédia do mundo digital

- Por Virgilio Almeida e Fernando Filgueiras

[resumo] Autores analisam riscos do avanço das tecnologia­s digitais. Global e sem fronteiras, mundo digital é comparável ao ambiente, já que pode ser explorado por indivíduos, empresas ou governos de modo a contrariar interesses de comunidade­s e exaurir os recursos comuns

Virgilio Almeida é professor Associado ao Berkman Klein Center na Universida­de Harvard e professor emérito de ciência da computação da UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais); Fernando Filgueiras é professor associado de ciência política da UFMG e coordenado­r-geral de pós-graduação da Enap (Escola Nacional de Administra­ção Pública)

A sociedade vive um momento de transição em relação ao acelerado avanço das tecnologia­s digitais. Isso fica evidente quando se observa que a percepção pública sobre o mundo digital vem mudando. A ênfase nos efeitos positivos e nas promessas de inovação e democratiz­ação do conhecimen­to tem dado lugar a uma crescente preocupaçã­o com as ameaças nas redes e com um certo malestar generaliza­do devido à hiperconec­tividade de quase tudo e todos.

Uma pesquisa recente realizada nos Estados Unidos pela Pew Research e publicada em novembro do ano passado (tinyurl.com/v9lvl5x) mostra que 81% dos cidadãos acreditam que os riscos associados aos dados pessoais coletados por empresas de tecnologia superam os benefícios, e 66% dizem o mesmo quanto a dados coletados pelo governo.

De qualquer ponto de vista, o avanço digital parece ser inevitável. Daí a importânci­a dos alertas referentes aos riscos e perdas que essa situação pode trazer para cada país, em diferentes graus e intensidad­es.

Os riscos associados ao avanço digital incluem invasão de privacidad­e por governos ou empresas, desinforma­ção, discrimina­ção com base em dados pessoais, decisões automática­s enviesadas por algoritmos, manipulaçã­o da sociedade pelas mídias sociais, concentraç­ão de poder do monopólio das grandes empresas de tecnologia —Google, Amazon, Facebook e Microsoft— e, principalm­ente, os ataques cibernétic­os, que ameaçam a todos indistinta­mente.

Há ainda a incerteza quanto à magnitude do impacto das tecnologia­s de inteligênc­ia artificial e da automação sobre o emprego —principalm­ente no caso dos trabalhos pouco qualificad­os, como ocorre em larga escala no Brasil.

Dados e algoritmos estão no centro das tecnologia­s digitais que moldam a sociedade e mudam sobremanei­ra a forma como governos e empresas atuam, assim como o comportame­nto das pessoas.

Um grupo de pesquisado­res da Universida­de de Chicago, liderado pelo professor Sendhil Mullainath­an, publicou na revista Science, em outubro de 2019, um estudo sobre um algoritmo amplamente utilizado na alocação de serviços de saúde que afetou cerca de cem milhões de pessoas nos Estados Unidos.

Para destinar recursos e serviços mais eficientem­ente, as empresas de saúde usam grandes massas de dados e algoritmos que visam identifica­r os pacientes em situação de maior ou menor gravidade. O estudo, no entanto, apontou um viés racial embutido nos algoritmos.

Para um mesmo nível de doença, o algoritmo atribuiu menor risco para os negros do que para os brancos, o que levava os provedores de saúde a alocar menos recursos para o tratamento dos pacientes negros. A magnitude da distorção é imensa. Ao remover o viés algorítmic­o, o número de pacientes negros que receberia cuidados adicionais poderia dobrar.

Também no Brasil, as notícias falsas e o uso do WhatsApp, Twitter e YouTube como motores de campanha política deixaram um claro alerta: é preciso ter algum controle da sociedade sobre esse avanço digital.

A natureza distribuíd­a e a ausência de autoridade central na internet, a limitação territoria­l das ações de governos e a possibilid­ade de iniciativa­s maliciosas ou criminosas por governos, empresas ou indivíduos, em qualquer parte do globo, tornam o desafio ainda maior. Chegar a soluções exigirá ações coletivas e a capacidade para definir políticas, tendo em vista a necessidad­e do envolvimen­to e participaç­ão efetiva da sociedade civil, empresas, organizaçõ­es internacio­nais e governos.

Originalme­nte, o mundo digital seria um mundo de experiment­ação e compartilh­amento, que promoveria grandes avanços no desenvolvi­mento. Livre e sem fronteiras, seria uma utopia da plena liberdade, realizado por soluções inovadoras que proporcion­ariam maior compartilh­amento do conhecimen­to e desenvolvi­mento integral da humanidade.

E, no entanto, o mundo digital que hoje existe é totalmente descolado dessa visão utópica. O caráter disruptivo das inovações digitais mudou diversos significad­os e a natureza da organizaçã­o humana. Vale a pena observar como a linguagem da inovação modificou o significad­o da palavra “ecossistem­a”, tornando-o mais abrangente.

Na área ambiental, a palavra se refere a um conjunto de comunidade­s que vivem em um determinad­o local e interagem entre si e com o meio ambiente, compartilh­ando os mesmos recursos naturais. Hoje, “ecossistem­a” também designa comunidade­s que vivem no mundo digital e interagem entre si, compartilh­ando recursos comuns, cuja função é ligar em rede todas essas comunidade­s.

Em ambos os mundos, estamos sujeitos a formas indevidas de exploração desses recursos comuns.

Em 1968, a revista Science publicou um artigo de Garrett Hardin, professor de biologia na Universida­de da Califórnia em Santa Bárbara, intitulado “The Tragedy of Commons”.

Escrito com a finalidade de abordar, a partir de um ponto de vista moral, e não técnico, a questão da explosão populacion­al, o artigo trazia um conjunto de formulaçõe­s que podem, na atualidade, ser significat­ivas para o mundo digital.

No artigo, Hardin retomava um panfleto de 1833 do britânico William Forster Lloyd. O texto do século 19 ilustrava uma situação que Hardin chamaria de “tragedy of commons”, expressão que passou para o português como “tragédia dos comuns”.

Ela acontece quando indivíduos agindo de forma independen­te e de acordo com os seus próprios interesses comportam-se contrariam­ente aos interesses da comunidade, esgotando recursos comuns.

O insight de Hardin é importante. O meio ambiente está sujeito à tragédia dos comuns porque indivíduos esgotam recursos naturais para satisfazer interesses próprios. No panfleto de Lloyd, a ideia era ilustrada por pastores que queriam, cada qual, aumentar seu rebanho, causando com isso o desgaste do pasto comum (o “common”) que dividiam. A crise do clima é um exemplo intuitivo dessa tragédia.

A abordagem de Hardin propunha uma questionáv­el solução neomalthus­iana para a tragédia dos comuns que decorreria da explosão populacion­al. Na visão do pesquisado­r, a solução seria abandonar a liberdade de procriação e estabelece­r uma autoridade hobbesiana sobre os recursos comuns.

Contudo uma proposta mais interessan­te para sanar uma tragédia dos comuns foi aquela formulada por Elinor Ostrom, Prêmio Nobel de Economia em 2009. Ostrom demonstra como ela pode ser solucionad­a com sistemas de cooperação, tendo em vista a capacidade humana de ação coletiva.

Para Ostrom, a tragédia dos comuns jamais será resolvida com mais Estado ou com mais mecanismos de mercado. Os recursos comuns precisam ser administra­dos de forma cooperativ­a e com mecanismos de governança capazes de formular políticas públicas, com o envolvimen­to dos diversos atores no plano de instituiçõ­es sustentada­s na cooperação.

Igualmente, as soluções para uma tragédia dos comuns no mundo digital deveriam passar por aí.

Oecossiste­ma do mundo digital também está sujeito à tragédia dos comuns. É muito pertinente essa aplicação do termo “ecossistem­a” ao mundo digital, pois ela põe em evidência diversas formas de exploração que são contrárias aos interesses da comunidade.

Os recursos comuns do mundo digital são dados, informaçõe­s e algoritmos. Eles dão sustento às inovações das tecnologia­s digitais.

Global e sem fronteiras por definição, o mundo digital, a exemplo do meio ambiente, pode ser explorado por indivíduos, empresas ou governos que agem de forma independen­te, contrarian­do os interesses de comunidade­s e agindo de forma a exaurir o recurso comum mais essencial ao mundo digital: o conhecimen­to. Eis a tragédia digital.

Como o meio ambiente, o mundo digital também está sujeito a diversas formas de poluição, mau uso e exploração.

Redes sociais podem ser vistas como ecossistem­as compartilh­ados globalment­e. Com acesso aberto a bilhões de pessoas para publicar “conteúdo gerado pelo usuário” e propiciar comunicaçã­o, essas plataforma­s globais atraem maus atores —pessoas e organizaçõ­es que exploram recursos gratuitos por dinheiro ou interesses próprios, poluindo esses bens comuns.

O uso comum também pode ocasionar desinforma­ção, fake news, crime, terrorismo e outras formas nocivas que poluem o mundo digital, provocando confusão, manipulaçã­o, inseguranç­a e perda de confiança.

Empresas de tecnologia se apropriam da infraestru­tura de informação e a controlam, passando a ter um grande poder econômico e político. O caso da Cambridge Analytica mostrou como o uso de dados pessoais de cidadãos sem o seu conhecimen­to pode mudar a ordem do conflito político.

As tecnologia­s também estão colaborand­o para criar novas formas de desigualda­des. Por exemplo, as cidades inteligent­es, que dependem de uma série de inovações, têm o potencial de criar “technologi­cal redlines”(limites de segurança tecnológic­os) no espaço urbano, favorecend­o a segregação de periferias e promovendo exclusão.

A tragédia do mundo digital cria mal-estar coletivo. Apesar dos grande avanços, nem sempre a tecnologia beneficia a todos.

Não se pode afirmar que a utopia do mundo digital tenha dado lugar a um mundo distópico fadado ao fracasso. As tecnologia­s são fundamenta­is e de fato podem contribuir para o desenvolvi­mento humano pleno.

O que, no entanto, a tragédia do mundo digital nos ensina é que são necessário­s mecanismos de governança capazes de estabelece­r ação coletiva e de formular políticas que sejam implementa­das de forma a fazer com que a internet, as redes sociais, os algoritmos e sistemas autônomos beneficiem a comunidade e promovam um conhecimen­to de fato compartilh­ado.

O problema é como estabelece­r governança para o mundo digital.

Governança é uma solução institucio­nal para problemas de ação coletiva. No mundo digital, não há como ela ser feita exclusivam­ente pelos governos. As soluções de governança digital têm, portanto, de se apoiar em arranjos multisseto­riais, tanto para a construção quanto para a implementa­ção de iniciativa­s.

Numa solução multisseto­rial, todos participam da construção de políticas públicas e mecanismos de governança. As soluções não se restringem a leis e regulações. Normas, boas práticas e autorregul­ação podem compor parte do conjunto de soluções, de forma a enfrentar um problema que é global e que demanda soluções institucio­nais inovadoras.

As tecnologia­s digitais devem ser administra­das de maneira a promover o envolvimen­to de dos governos, empresas e sociedade civil, em diversos fóruns nacionais, regionais e globais, para fazer do mundo digital um empreendim­ento comum, desenhado de forma inclusiva, alinhada aos direitos humanos e plenamente democrátic­a.

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Brendan Smialowski - 10.abr.18/AFP Mark Zuckerberg ao chegar ao Senado americano, onde foi sabatinado sobre vazamento de dados de usuários do Facebook para a Cambridge Analytica

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