O sapo já vai ferver
Restrição de viagens de cientistas do Brasil não teve repercussão à altura
Boletim especial sobre minha mesa: “A secretária de Educação, Betsy DeVos, anunciou que de agora em diante cada departamento das universidades nos EUA somente poderá enviar um pesquisador para cada reunião ou congresso científico, independentemente da fonte do financiamento para a viagem. Dos 40 pesquisadores chefes de laboratórios do Instituto do Cérebro da Universidade Vanderbilt, cada um com sua especialidade, apenas um poderá participar da próxima reunião anual da Sociedade de Neurociências —que, por isso, agora deixa de reunir mais de 20 mil neurocientistas dos vários cantos dos EUA; bastam uns cem, mais é desperdício. Os estrangeiros estarão lá, apresentando suas descobertas mais recentes, trocando conhecimento, impressões, conselhos, dificuldades e sucessos; apenas os pesquisadores estadunidenses estarão limitados a um por departamento e, portanto, por universidade do país. Requisições para um segundo cientista viajante somente serão consideradas em circunstâncias extraordinárias. Ah, sim: o pedido de autorização para viagem deve ser feito por escrito à Secretaria de Educação ao menos 30 dias antes do evento; o governo se reserva o direito de negar ou conceder a autorização até a véspera da viagem”.
Ah, perdão, país errado. A portaria foi publicada no Brasil, no último dia de 2019, pelo Excelentíssimo Senhor Ministro Abraham Weintraub. Nem o mais insano dos presidentes estadunidenses se atreveria a cassar o direito de ir e vir de seus cientistas. Primeiro, por causa da tal da liberdade, assegurada pela Constituição, ao menos aos nacionais. Segundo, até os conservadores mais vermelhos de raiva do liberalismo se orgulham dos feitos intelectuais e tecnológicos de seu país. Terceiro, a Academia
Chinesa de Ciências está bafejando cada vez mais forte no cangote dos EUA, ameaçando usurpar sua hegemonia científica, então o Congresso continua aumentando a cada ano o orçamento das agências de fomento, que, aliás, incentivam os cientistas a viajar para exibir seus feitos.
Eu e colegas na Vanderbilt temos preocupações, mas não essa de ter que literalmente pedir licença para embarcar num avião e fazer nosso trabalho. E se algo semelhante à censura científica fosse aventado nos EUA —porque o que mais é a limitação se não censura? Daqui a pouco limitarão
a um filme por estado, um jornal por cidade?—, gosto de pensar que a reação do público, cientista ou não, seria imediata e agressiva à altura. Manifestações de personalidades e influenciadores, protestos e panelaços, discursos inflamados de repúdio a tamanha medievalidade governamental.
Certamente não teria a polidez paciente dos queridos Luis Davidovich e Ildeu Moreira, presidentes da Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que delicadamente explicaram em uma carta ao senhor ministro por que é importante para o país que cientistas possam viajar. É sério? Colegas cientistas, cadê a indignação?
A geração de conhecimento no Brasil está na panela há tempos. Tentar argumentar civilizadamente com o cozinheiro é sinal de que o cozimento lento está funcionando: não tem ninguém entornando o caldo. A fervura é iminente.