Folha de S.Paulo

Mulheres formam coletivos para driblar falta de estrutura e assédio em estádios

Torcedoras formam coletivos para se apoiarem, e entidades buscam soluções

- Natália Passafaro

“É importantí­ssimo que todos percebam que a nossa presença [nos estádios de futebol] veio para ficar e só tende a crescer. Por isso, enfrentar situações que dificultem a participaç­ão do público feminino é fundamenta­l. Por exemplo, dar atenção especial às torcedoras mães

Rita de Cássia Franco, 45 torcedora do Corinthian­s que participa do coletivo Toda Poderosa Corinthian­a

Existem diferenças por regiões, mas, no geral, nós temos menos policiais para revista, menos banheiros e, se acontece algo dentro do estádio, não temos muito a quem recorrer

Tainá Shimoda, 28 torcedora do Palmeiras que participa do grupo VerDonnas

são paulo “Por que você não ficou em casa?” O questionam­ento ouvido por diversas mulheres quando vão aos estádios no Brasil explica em parte a razão para elas não estarem mais presentes neles.

Da saída de suas casas até chegarem às arquibanca­das, é comum que enfrentem uma série de desafios que fazem com que muitas desistam de acompanhar presencial­mente os jogos, conforme relatos ouvidos pela reportagem.

Assédio, falta de segurança e a sensação de não pertencime­nto completam o cenário.

“Existem diferenças por regiões, mas, no geral, nós temos menos policiais para revista, menos banheiros e, se acontece algo dentro do estádio, não temos muito a quem recorrer”, diz a palmeirens­e

Tainá Shimoda, 28, que faz parte do coletivo de torcedoras VerDonnas. “Seria bom, por exemplo, ter mais PMs mulheres para nos atender.”

A falta de incentivo e o conceito familiar ou social de que o estádio não é um local adequado para mulheres também contribui para o afastament­o, segundo uma pesquisa encomendad­a pela Federação Paulista de Futebol (FPF) e realizada pelo Ibope/Repucom.

“Há uma cultura equivocada de que mulher não gosta de futebol, de que estádio não seria um lugar para nós”, diz a corintiana Rita de Cássia de Lima Franco, 45.

Em muitos estádios brasileiro­s, a infraestru­tura é precária. Faltam instalaçõe­s sanitárias adequadas, como banheiros femininos em número suficiente, com iluminação e espaços que possibilit­em a presença de bebês e crianças.

Também há carência de acessibili­dade, com entradas seguras, que evitem assédio, agilizem a revista e facilitem o ingresso nos locais.

“É importantí­ssimo que todos percebam que a nossa presença veio para ficar e só tende a crescer. Por isso, enfrentar situações que dificultem a participaç­ão do público feminino é fundamenta­l. Por exemplo, dar atenção especial às torcedoras mães. Facilitar o acesso delas e de seus filhos. Mostrar que ir ao estádio também é um programa familiar”, defende Rita.

De acordo com um outro estudo divulgado pela FPF, este feito pelo Datafolha, apenas 14% do público que frequenta os estádios do Campeonato Paulista é feminino. Diante desse número, os 16 clubes participan­tes da competição e a federação decidiram se unir em um movimento que busca ampliar a presença delas nos jogos. A campanha ganhou o nome de #ElasNoEstá­dio.

“Segurança e conforto são pré-requisitos para qualquer evento, por que no futebol deve ser diferente?”, diz Aline Pellegrino, diretora de futebol feminino da FPF. “Vamos resolver um atraso de 40 anos em alguns meses? Claro que não. Mas estamos dando o primeiro passo para essa mudança, e ela é responsabi­lidade da sociedade como um todo.”

No início do século 20, assistir aos jogos de futebol possibilit­ava às mulheres experiment­ar o mundo além dos afazeres domésticos. A populariza­ção do esporte, aliada à ideia de que o futebol era pouco adequado aos padrões de feminilida­de e à proibição da prática para as mu

Os coletivos são essenciais. Falo por mim, que sempre fui aos jogos sozinha e me sentia insegura. Depois que comecei a fazer parte, conhecer outras meninas, a minha ida ficou mais leve

Maria Millie, 21 torcedora do São Paulo que participa do movimento SãopraElas

lheres no país em 1941 contribuír­am para que, aos poucos, elas passassem a ser figuras raras nos estádios.

Com o fim da proibição, em 1979, e com mais debates sobre igualdade de gênero, aos poucos as mulheres voltaram aos estádios brasileiro­s.

Na esteira desses debates, nasceram coletivos em que mulheres se reúnem para ir aos jogos. Organizada­s em grupos de WhatsApp e redes sociais, elas combinam locais de encontro e se apoiam do caminho para o jogo até o retorno para casa.

“Os coletivos são essenciais. Falo por mim, que sempre fui aos jogos sozinha e me sentia insegura. Depois que comecei a fazer parte, conhecer outras meninas, a minha ida ficou mais leve”, conta Maria Millie, 21, são-paulina e integrante do movimento SãopraElas.

Foi durante um clássico contra o Santos que Maria viu o silêncio das arquibanca­das frente ao assédio. A bandeirinh­a foi alvo durante todo o jogo de comentário­s desrespeit­osos vindos de um torcedor.

“Ele dizia que lugar de mulher não era nem em campo nem na arquibanca­da, mas sim na pia lavando louça. Claro que respondemo­s a ele, mas ninguém à nossa volta falou nada. Foi triste”, relembra.

Além das idas aos jogos, o grupo Toda Poderosa Corinthian­a promove eventos para discutir machismo e trocar experiênci­as entre torcedoras. “Os clubes devem entender que mulheres compõem seu patrimônio imaterial e valorizá-las com ações práticas, não apenas como marketing”, afirma Rita.

Alguns clubes têm tentado realizar ações de enfrentame­nto à violência e de incentivo à presença feminina.

É o caso do São Paulo, que disponibil­iza o email saopaulina­s@saopaulofc.net para que as mulheres relatem casos de assédio e ofensas.

O Santos oferece às torcedoras 50% de desconto em qualquer plano de sócio do clube. Na Bahia, a Ronda Maria da Penha tem sido deslocada para os jogos realizados no estado e busca inibir ações intimidado­ras e violentas. O site #MeDeixeTor­cer, do tricolor baiano, incentiva mulheres a denunciare­m abusos.

“É importante tocar na ferida, abordar o tema, propor ideias, mas é ainda mais relevante colocar tudo isso em prática. Vamos arregaçar as mangas e colocar tudo isso de pé”, diz Pellegrino.

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28.jul.19 - Divulgação SãopraElas Torcedoras do coletivo SãopraElas durante jogo entre São Paulo e Palmeiras do Brasileiro feminino

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