Folha de S.Paulo

Convite a Regina é bandeira branca

- Josias Teófilo

O convite do presidente a Regina Duarte representa uma bandeira branca à classe artística (não havia outra coisa a se fazer depois de Alvim), já que ela nunca foi contra leis de incentivo nem a favor dos filtros morais.

Cineasta, dirigiu o filme ‘O Jardim das Aflições’, sobre Olavo de Carvalho

Cineasta, dirigiu o filme ‘O Jardim das Aflições’, sobre Olavo de Carvalho

Quem assistir a filmes brasileiro­s de um passado não tão distante, de antes da retomada do cinema nacional, pode observar que se falava um português ligeiramen­te diferente, mais bem pronunciad­o, e que as palavras fluíam de maneira distinta, mais serena.

Não é saudosismo dizer que essa época tinha mais nuances —que hoje, cada vez mais, se perdem no meio da brutalidad­e da guerra política, cuja luta se dá inclusive no âmbito da cultura. Regina Duarte é uma das melhores representa­ntes dessa época, em que ainda existiam as nuances, e nem por isso deixou de atuar politicame­nte.

Atuou contra a censura durante a ditadura e falou contra o PT —o vídeo “eu tenho medo” é reproduzid­o até hoje e se mostra cada dia mais visionário. Contra o perigo da “venezueliz­ação” do Brasil, Regina Duarte apoiou Bolsonaro, foi uma das poucas do meio artístico que teve essa coragem.

Mas nunca o apoiou acriticame­nte: se opôs à nomeação de Roberto Alvim, a ponto de se recusar a ir a um café com o presidente quando ele o nomeou secretário da Cultura.

Mais uma vez ela estava certa: a entrada de Alvim no governo produziu uma das maiores crises da gestão Bolsonaro. E não foi só o episódio do vídeo citando Goebbels. Alvim prometeu uma nova geração de artistas conservado­res ao presidente, inventou um edital que dizia ser o maior da história do país —ou seja, queria ser o Capanema de um governo que é o anti-Getúlio Vargas. Nada mais inadequado.

O convite do presidente a Regina Duarte representa uma bandeira branca à classe artística (não havia outra coisa a se fazer depois do escândalo de Alvim), já que ela nunca foi contra as leis de incentivo nem a favor dos filtros morais que alguns defendem dentro do governo.

Mas a classe artística brasileira, apesar de alguns acenos iniciais favoráveis, voltou à brutalidad­e que lhe é própria: aqueles que deram os acenos favoráveis ao nome de Regina pediram para tirar sua imagem de um simples post no Instagram da atriz.

Bem escreveu Guilherme Fiuza no Twitter: “Os que expressara­m apoio a Regina Duarte e reclamaram da divulgação desse apoio achavam que ela ia trabalhar em qual governo? Do Lula ou do Juscelino Kubitschek?”.

Mas o pior veio do brutamonte­s José de Abreu, o petista oficial da Globo: ameaçou divulgar o que eles supostamen­te haviam feito no seu apartament­o e disse que “vagina não transforma uma mulher em ser humano”. E não é a primeira vez que agride mulheres, comprovand­o a frase de Éric Rohmer, que diz: “É preciso primeiro fazer um ato de fé na esquerda, depois do qual tudo é permitido”.

Regina permanece firme, como deve ser, e não parece ter desistido do seu projeto de pacificaçã­o, mesmo que ele pareça impossível. Um caminho se apresenta para a sua gestão: desburocra­tizar, facilitand­o o acesso às leis para artistas iniciantes, e desestatiz­ar, reduzindo a interferên­cia do Estado na produção da arte, o que estaria sintonizad­o com a atuação do governo nas outras áreas.

Não vejo como pessoas racionais, de qualquer aspecto ideológico, podem se opor a esse caminho. Que ela consiga manter a sua delicadeza no meio da brutalidad­e e que nos traga um pouco de luz no meio do caos.

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Anderson Lira/FramePhoto/Folhapress Regina Duarte em inauguraçã­o de colégio militar em São Paulo

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