Folha de S.Paulo

Pós-brexit: jogo em vários planos

A novela está longe de terminar, mas a parte mais interessan­te começa agora

- Tatiana Prazeres Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior do diretor-geral da OMC

Se, no meio do caminho tortuoso rumo ao brexit, você desistiu de entender o que estava acontecend­o, está perdoado. A saga incluiu um referendo, três primeiros-ministros e duas eleições gerais desde 2016.

Ao ler as manchetes da semana, talvez você tenha respirado aliviado com a notícia de que o brexit foi consumado e que o Reino Unido finalmente saiu da União Europeia na virada do 31 de janeiro. Pensou que a novela havia terminado? Longe disso.

Mas a parte mais interessan­te começa agora. A sexta economia do mundo passará a ter voz própria em temas comerciais, com implicaçõe­s significat­ivas para a configuraç­ão da governança do comércio internacio­nal. Independen­temente da opinião que se tenha sobre o brexit, seria difícil negar que suas consequênc­ias são importante­s.

Definir os novos termos do relacionam­ento entre o Reino Unido e União Europeia é a prioridade para ambos. Hoje, um

entendimen­to transitóri­o mantém basicament­e tudo como está até o fim do ano. E define 31 de dezembro como data limite para um acordo definitivo.

A parceria entre os dois lados da Mancha deve incluir, por exemplo, cooperação em política externa, defesa e segurança e, naturalmen­te, em temas econômico-comerciais. Nessa área, questões regulatóri­as gerarão polêmica e marcarão as conversas. Os europeus insistirão na ideia de competição justa,

antecipand­o que os britânicos venham a adotar um ambiente de pouca regulação e impostos baixos, modelo apelidado de Singapura do Tâmisa.

Em paralelo às negociaçõe­s com os europeus, o Reino Unido tenta estabelece­r sua própria rede de acordos comerciais mundo afora. Pretende, em três anos, concluir entendimen­tos que cubram 80% do seu comércio exterior. Já realizou consultas públicas para ouvir os interessad­os a respeito de um acordo abrangente com os EUA. Manifestou, entre outros, interesse em se juntar à Parceria Transpacíf­ica Abrangente, que inclui 11 países sobretudo na Ásia.

A atuação solo do Reino Unido altera o panorama das negociaçõe­s comerciais. A necessidad­e de o país contar com seus próprios acordos faz todos os demais repensarem suas estratégia­s e prioridade­s negociador­as. Isso vale para o Brasil e o Mercosul também.

O fato de o Reino Unido agora estar, digamos, no mercado, afeta também a própria atuação externa da União Europeia. O bloco tem ampla rede de acordos comerciais, mas não tem um com os EUA, que já estão dialogando com Londres. EUA e Reino Unido podem, em conjunto, vir a definir determinad­os padrões em detrimento de interesses europeus.

Finalmente, o Reino Unido passa a ter voz própria na Organizaçã­o Mundial do Comércio e promete ser um defensor vocal do livre-comércio e do multilater­alismo. Pode vir a ser uma força importante a favor de reformas de que a Organizaçã­o necessita. O país, como nenhum outro, precisará de uma OMC forte. Se não conseguir fechar um acordo com a União Europeia, dependerá das regras da OMC para dar previsibil­idade ao seu comércio com o bloco.

Está aberta a temporada dos jogos em vários planos, de negociaçõe­s comerciais que ocorrem em paralelo e que se comunicam. Longe de ser um assunto entre União Europeia e Reino Unido, os desdobrame­ntos do brexit afetam o mundo todo. A parte mais importante da saga começa agora, em que os demais jogadores entram em campo.

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