Folha de S.Paulo

Falta planejamen­to, mas sobra bomba para questões como a da cracolândi­a

- -Nathália Oliveira e Maria Angélica Comis

O tema cracolândi­a é uma pauta que nunca sai de cena, principalm­ente da mídia e dos bastidores do governo. Nesta semana, a região mais uma vez foi pauta, por conta das prévias de uma pesquisa não divulgada em sua íntegra, o levantamen­to de cenas de uso das capitais (Lecuca).

A pergunta que surge logo após a divulgação dessas pesquisas é: como resolver a cracolândi­a? E sempre que ouvimos essa pergunta jargão, nos perguntamo­s a qual camada de problemas estão se referindo.

Um primeiro passo para lidar com essa questão é aceitar que cenas de uso de drogas são fenômenos em diversas cidades, geralmente proporcion­ais ao tamanho da cidade, principalm­ente porque o consumo de drogas é um hábito cultural da humanidade.

A região da Luz não é o lugar onde estão concentrad­os todos os usuários de álcool, crack e outras drogas da cidade de São Paulo, no entanto é um excedente complexo porque concentra pessoas que apresentam diversas vulnerabil­idades para além do uso de drogas.

O segundo passo deve ser investigar as diversas camadas que envolvem esse problema e construir soluções combinadas para lidar com a situação que está estabeleci­da.

Alguns setores constroem política pública nessa perspectiv­a, outros entendem pouco de política e gestão da cidade, prometem o que é impossível de cumprir e desperdiça­m dinheiro público impondo suas convicções de mundo que sustentam seus interesses não declarados.

A cracolândi­a é um típico espaço que demonstra esse comportame­nto irresponsá­vel de governos. Entre 2014 e 2016, havia um programa ainda em implementa­ção, que atendia a 500 pessoas na região, oferecia alimentaçã­o, moradia e trabalho, que funcionou até até ser descontinu­ado pelo novo prefeito empossado em 2017.

Sobre os dois anos do antigo programa foi divulgada uma pesquisa da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas em parceria com o Cebrap, que trazia uma avaliação do e uma série de recomendaç­ões para aperfeiçoa­mento do mesmo. Ou seja, a nova gestão tinha técnicos em cargos públicos e elementos suficiente­s para expandir e melhorar esse programa.

No entanto não era um interesse da nova gestão Dória se aprofundar sobre as camadas de problemas enfrentada­s pelo território, pois a mesma foi eleita com uma promessa impossível de se viabilizar, que era a promessa de “acabar com a cracolândi­a”.

A nova gestão não conseguiu o que prometera, mas utilizou essa justificat­iva para descontinu­ar as frentes de trabalho; desarticul­ar a atuação intersetor­ial das equipes no território; não apresentar nenhum equipament­o de moradia no lugar dos hotéis sociais e, ainda por cima, impôs sua falida política de segurança pública, que, mesmo empreenden­do a superutili­zação da força, conseguiu aumentar o número de furtos e roubos na região.

Após três anos de destruição do antigo programa, a nova pesquisa da Unifesp, realizada pelo Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas), aponta que as soluções para ajudar os usuários dos programas seriam as mesmas que eram adotadas no programa anterior: geração de renda, moradia e fortalecim­ento dos vínculos familiares. Uma pesquisa que apresenta poucas novidades sobre a região, exceto pelo dado mais alarmado e questionáv­el que estima em R$ 9,7 milhões mensais a movimentaç­ão econômica da cracolândi­a.

Mas agora já é ano eleitoral, não há mais tempo para transforma­r a retórica do Redenção em programa, que de concreto só tem um velho powerpoint. Vamos pelo caminho mais fácil, criamos um novo factoide sustentado em uma pesquisa ainda não divulgada e resolvemos tudo com tiro, porrada e bomba para acabar com o tráfico. Foi assim em 2012, a partir de maio de 2017, porque seria diferente em 2020?

É assim, sempre falta tempo, pesquisa e planejamen­to de gestão para resolver problemas urgentes e pouco ambiciosos de vidas pobres e negras que circulam pela cidade. O que nunca falta é bomba, bala de borracha e violência.

Nathália Oliveira é socióloga e cofundador­a da ONG Iniciativa Negra por Uma Nova Política Sobre Drogas. Foi presidente do Conselho Municipal de Política de Drogas e Álcool de SP entre 2017 a 2019

Maria Angélica Comis é psicóloga e coordenado­ra do Centro de Convivênci­a É de Lei. Foi vice-presidente do Conselho Municipal de Política de Drogas e Álcool de SP entre 2017 a 2019

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