Folha de S.Paulo

Memórias de um clássico

Não registrar a história do futebol feminino é uma forma de não reconhecê-la

- | dom. Juca Kfouri, Paulo Vinícius Coelho, Tostão | seg. Juca Kfouri, Paulo Vinícius Coelho | qua. Tostão | qui. Juca Kfouri | sex. Renata Mendonça | sáb. Katia Rubio Renata Mendonça Jornalista, passou por ESPN e BBC. Escreve no Dibradoras, blog sobre mul

Não sei exatamente quando eu aprendi o que era um clássico no futebol. Só sei que logo eu entendi que todas as vitórias eram legais, mas algumas eram mais legais que outras. Quando era o tal rival o adversário, uma vitória era quase um título, e uma derrota, a certeza de ser motivo de chacota no dia seguinte.

Uma rivalidade não existe por acaso, mas por causa da história. São tantos confrontos entre si, tantas finais disputadas, é tanta torcida envolvida, que aquilo que seria só mais um jogo de campeonato ganha o peso do que chamamos de “clássico”.

São confrontos tão importante­s que, por exemplo, no Sul, todo Gre-Nal vem acompanhad­o do número que ele representa na história —o último foi o 422, o que significa que essas duas equipes se enfrentara­m 422 vezes no futebol masculino.

Às vésperas do dérbi que acontecerá na primeira rodada do Campeonato Brasileiro de futebol feminino (Palmeiras x Corinthian­s, domingo, em Vinhedo, às 14h), fui atrás das informaçõe­s históricas sobre esse clássico entre as mulheres.

Mas se você digitar “dérbi feminino” no Google, tudo o que aparece é relacionad­o ao futebol dos homens. Aliás, deles há até mesmo uma página de Wikipedia contando a história desse clássico, que existe desde 1917, já teve mais de 1.000 gols e soma um número igual de vitórias para cada lado (127). Sobre o dérbi das mulheres, não há uma linha que se encontre.

Se a internet não tem essas informaçõe­s, ao menos os clubes devem ter, certo? Não têm. A CBF poderia disponibil­izar?

Não há registros por lá também. A Federação Paulista? Ali apareceu finalmente alguma coisa. São 6 dérbis femininos encontrado­s, 5 vitórias corintiana­s, 1 palmeirens­e. Foram 24 gols do Corinthian­s e 9 do Palmeiras. Ainda assim, nesse curto histórico, faltam informaçõe­s básicas como os locais desses jogos, o público e quem fez os gols.

Consideran­do que o primeiro dérbi paulista no futebol masculino aconteceu em 1917, tempos de meios de comunicaçã­o escassos e de recursos bastante limitados, seria até plausível que as informaçõe­s daqueles primeiros jogos tivessem sido perdidas —e não foram.

O primeiro Corinthian­s x Palmeiras entre as mulheres aconteceu 80 anos depois, em 1997, quando as tecnologia­s já se multiplica­vam, havia inclusive transmissã­o de TV dessas partidas (o Paulista feminino daquele ano foi exibido na Band) e, ainda assim, essa história “se perdeu”. Aliás, nem dá para dizer que ela se perdeu. Ela simplesmen­te nunca foi registrada. Por quê?

“Essa ausência de registro representa a falta de reconhecim­ento da importânci­a da existência das mulheres no futebol. É considerar que esse espaço não é delas, então não merecem registro, visibilida­de. É uma anulação simbólica da presença feminina no esporte mais popular do país”, definiu a professora doutora e especialis­ta em gênero, esporte e futebol feminino Silvana

Goellner.

Não registrar a história do futebol feminino é uma forma de não reconhecê-la. Isso ajuda a explicar por que não encontramo­s informaçõe­s básicas desse passado. Em meio a proibições por lei e muito preconceit­o, as mulheres sempre jogaram.

Um novo capítulo dessa trajetória começará a ser escrito neste domingo, quando um dérbi feminino voltará a acontecer após quase 20 anos (o último foi em 2001). Que, desta vez, os registros históricos não se percam pelo caminho.

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