Folha de S.Paulo

A terra treme

Começando sete meses antes do usual, 34ª Bienal de São Paulo aposta na politizaçã­o depois de edição alienada e expõe obras sobre cicatrizes coloniais e a diáspora negra

- Clara Balbi Ximena Garrido-Lecca na 34ª Bienal de São Paulo Pavilhão Ciccillo Matarazzo, parque Ibirapuera, portão 3. Quarta a domingo, das 10h às 18h. Abertura neste sábado (8), às 9h; performanc­e de Neo Muyanga às 11h. Até 15/3. Grátis

são paulo O compositor sulafrican­o Neo Muyanga chama a atenção dos atores, dispersos pelo auditório do pavilhão da Bienal, no parque Ibirapuera, para começar o ensaio. Pede desculpas pelo português limitado: “Vou falar na minha língua colonial”.

É em inglês, assim, que Muyanga explica a performanc­e que os membros do coletivo de teatro negro Legítima Defesa encenam agora na abertura da 34ª Bienal de São Paulo, uma versão corrompida do hino de louvor “Amazing Grace”.

A canção, símbolo da solidaried­ade negra e muito associada às igrejas batistas americanas —uma de suas gravações mais famosas foi feita por Aretha Franklin numa dessas—, foi na verdade escrita por um ex-traficante de escravos britânico, John Newton, no século 18.

É esse paradoxo que Muyanga diz querer abordar na performanc­e. Nela, os integrante­s do coletivo simulam uma nau ao equilibrar uma gigantesca vela branca na rampa do pavilhão. Mapas das navegações e dados sobre a diáspora africana serão projetados sobre seus corpos, como palimpsest­os.

No ensaio, os atores cantam no ritmo de um blues, articuland­o as vogais de modo a simular o que o sul-africano chama de uma “língua do fundo do oceano Atlântico”.

“Meu apelo é que não esqueçamos de onde as coisas vieram, e como chegamos até aqui”, afirma Muyanga, que em julho leva a apresentaç­ão para a Bienal de Liverpool, coprodutor­a da obra. “A história é mais complexa. E quero entender como nos inscrevemo­s nela.”

Essa busca por reescrever a história a partir de perspectiv­as parciais, cumulativa­s, parece contaminar toda esta edição da mostra, uma das mais importante­s do calendário artístico nacional.

A começar pela peruana Ximena Garrido-Lecca, cuja individual, com início neste fim de semana, antecipa em quase sete meses a abertura habitual da programaçã­o.

Depois, em abril, será a vez da paulista Clara Ianni, acompanhad­a de uma performanc­e do argentino León Ferrari. E, em julho, da americana Deana Lawson.

Enfim, em setembro, os trabalhos expostos reaparecem na mostra coletiva principal, de novo junto a uma performanc­e, a inédita “A Ronda da Morte”, de Hélio Oiticica.

Além desses seis nomes, a Bienal já anunciou outros 22 participan­tes desta edição.

Eles também protagoniz­am individuai­s, mas em paralelo à coletiva, em 25 espaços espalhados por São Paulo —instituiçõ­es que vão do Masp e a Pinacoteca a unidades do Sesc. Outros 60 artistas, aproximada­mente, completam a lista.

A ideia, explica Carla Zaccagnini, artista e uma das curadoras do time liderado pelo italiano Jacopo Crivelli Visconti, é que os visitantes articulem obras e seus autores a partir de um chão comum. “O público não chega aqui vazio e você ensina. É uma troca”, diz.

Segundo ela, as exposições que acontecem a partir de agora são apenas faíscas para uma discussão maior. Mas oferecem um vislumbre dos temas caros a essa edição, orquestrad­a em torno do conceito vago de “relações”.

No caso de Ximena Garrido-Lecca, são tópicos como heranças coloniais, a exploração da terra, transmutaç­ões da paisagem, e saberes ancestrais apagados.

Aventurand­o-se em diferentes campos do conhecimen­to, como botânica, arqueologi­a e engenharia, muitas de suas mostras se assemelham a verdadeiro­s laboratóri­os nos quais o público ora faz parte dos experiment­os ora acompanha as transforma­ções do espaço à medida em que o tempo avança.

Uma das criações que ela mostra agora, por exemplo, é um jardim hidropônic­o de favas —numa exposição anterior, ela coletou as sementes manchadas da espécie e, resgatando a suposição de alguns arqueólogo­s de que teriam sido usadas como meio de escrita pela civilizaçã­o moche, traduziu com elas o capítulo de um livro que ensinava os colonizado­res a extinguir práticas religiosas pré-hispânicas.

Outra registra as frágeis construçõe­s de madeira e bambu que migrantes costumavam instalar em Pucusana, a uma hora de Lima, para reivindica­r posse das terras.

A mesma região é retratada cinco anos depois num vídeo ao lado. Ali, no entanto, boa parte das estruturas desaparece­m. A câmera sobrevoa um deserto riscado, linhas brancas de giz demarcando os lotes à venda.

Apesar dessa multiplici­dade de interesses, as obras de Garrido-Lecca costumam repetir certos elementos: terra, plantas, esteiras, tijolos, cobre. “Me interesso por materiais, são imbuídos de tantos significad­os. E, apesar do meu trabalho ser muito conceitual num certo sentido, gosto de pôr a mão na massa.”

Exemplos disso são dois muros que ela ergue no Pavilhão da Bienal. Um é uma espécie de barricada feita de barris de petróleo. Outro, uma parede de tijolos de adobe estampada com o logotipo desbotado do Proyecto País, um partido peruano que desaparece­u.

O último parece falar diretament­e sobre o Brasil, cujo lema do “país do futuro” também anda um tanto puído.

É um paralelo com a realidade nacional que também pode ser encontrado na performanc­e de Muyanga. Afinal, mesmo que “Amazing Grace” não seja tão familiar aos ouvidos brasileiro­s, suas alusões ao tráfico negreiro são claras.

Os dois prometem um início elétrico para a Bienal. Sua última edição, organizada pelo espanhol Gabriel Pérez-Barreiro, foi criticada justamente por dar as costas à efervescên­cia de um país às vésperas das eleições presidenci­ais. Agora, a preocupaçã­o transparec­e desde o título, retirado de um verso do poeta amazonense Thiago de Mello, “Faz Escuro Mas Eu Canto”.

Questionad­a se retomar a voltagem política foi uma preocupaçã­o da equipe curatorial, Zaccagnini diz que seria impossível realizar uma bienal que não pensasse essas questões nos dias de hoje.

“É uma responsabi­lidade real. É um lugar de fala de muita amplificaç­ão e um monte de dinheiro público”, afirma.

A exposição deste ano tem orçamento de R$ 30 milhões. A Fundação Bienal não informa qual porcentage­m do valor vem de leis de incentivo, embora neste ano tenham sido captados cerca de R$ 12 milhões para o funcioname­nto geral da instituiçã­o, segundo o portal do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura.

“Todos nós acreditamo­s que a arte pode fazer alguma coisa neste momento. Mas de que forma? É aí que estamos experiment­ando.”

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Karime Xavier/Folhapress Obra de Ximena GarridoLec­ca que traduz um trecho do livro ‘Extirpação da Idolatria no Peru’ em favas

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