Notas sobre ‘O Fervo’
Documentário traz Raquel Virgínia, Assucena Assucena, Liniker e Tássia Reis
Recentemente assisti ao documentário “O Fervo”, nome do show protagonizado por quatro talentos consagrados na música brasileira: Raquel Virgínia, Assucena Assucena, Liniker, Tássia Reis.
O documentário é dirigido por Didi Couto, jornalista que tem histórico de apoio à cultura, sobretudo à população negra, em sua primeira experiência na posição. Com produção de Marcos Maciel e
montagem de Renata Felisatti, tem apoio da Spcine, iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura que visa o desenvolvimento de cinema, televisão, games e novas mídias.
Ao trazer cenas dos bastidores antes de as artistas entrarem no palco, em São Paulo, em interações que aconteceram na passagem de som, na maquiagem e no pré-show, o filme leva o espectador a se sentar ao lado dessas grandes figuras
da música contemporânea e a participar de conversas íntimas, profundas e bem humoradas. Elas representam com louvor o espírito crítico e desafiador de parte do cenário artístico, que mantém com personalidade a autenticidade sufocada em tantas pessoas.
São artistas vindas de lugares sociais invisibilizados que, com suas vozes, estão a estilhaçar a máscara do silêncio, na feliz expressão da grande escritora Conceição Evaristo.
Processos de composição que respondem a essas existências à margem de afetos. Como conta Liniker, artista que tem percorrido o mundo com suas músicas, “escolhi também nessa fase de composição falar sobre o afeto, afeto que eu sentia, mas não recebia, foi uma forma de existir comigo”.
Em certo momento, Raquel Virgínia, avassaladora vocalista da banda As Bahias
e a Cozinha Mineira, sobre a qual já escrevi nesta Folha, senta ao lado do espectador e afirma sua existência:
“Eu compus numa situação que era a única coisa que eu tinha para fazer. Eu era uma andarilha na USP, essa era a real. Porque eu não entrava na sala de aula, não conseguia, tinha ódio. Então, eu tinha preguiça, me colocava numa posição meio blasée. Eu era a blasée, porque eles eram tão blasés que eu virava a blasée no meio dos blasés. E a única coisa que eu tinha para fazer ali dentro, com tanta informação e tanta consternação e raiva que eu estava sentindo, era compor”.
Assucena Assucena, vocalista nas Bahias, assim como Raquel, é travesti, e explica como esse reexistir carrega uma força inovadora: “A gente tem muito a dizer. Nossas vozes foram caladas por muito tempo. A maneira que a gente escreve é só nossa. A gente está apresentando ao mundo essa maneira de existir dentro da composição”.
Em entrevista especial à coluna, Didi Couto comenta a experiência de reunir artistas tão potentes: “Tássia, Raquel, Liniker e Assucena são cantoras e também compositoras, ou seja, donas das próprias vozes. Elas não estão silenciadas. Estão fervendo! Mulheres negras e mulheres trans sofrem com o racismo e a violência o tempo todo, e ter as protagonistas em momentos de afeto e de irmandade era um dos meus maiores objetivos. Queria também mostrar como elas são diferentes entre elas, que cada uma delas é um universo”.
Didi, que há anos está à frente do Metrópolis, programa da TV Cultura que é um respiro para a cena independente artística brasileira, conta como o documentário foi, também para ela, um momento de afirmação política da sua própria trajetória.
“Como jornalista e apresentadora, tive que lutar para ocupar espaços na Redação para além da minha apresentação. O racismo me fez símbolo de diversidade e ao mesmo tempo de história única. A gente sabe que não adianta ter uma apresentadora negra sem poder de decisão e toda uma equipe branca viciada numa representação da população afro-brasileira carregada de estereótipos. Nesse sentido, o curta foi para mim uma possibilidade de poder trabalhar com muita liberdade essas questões que eu persigo.”
A cantora Tássia Reis é também uma brilhante compositora, e nada mais belo do que encerrar este texto com suas palavras sobre essa união entre composição e existência trazida pelo documentário:
“[A composição] É um processo de escrita e também é um processo de investigar quem você já foi, quem é seu ancestral. Hoje em dia o candomblé tem sido muito presente na minha vida também, então entender como eu lido e como essas forças que são tão presentes pra mim influenciam na minha vida. É aprender a respeitar mais esses impulsos que, na verdade, é a vida gritando dentro de mim”.
Que a vida continue a gritar sempre no coração dessas grandes artistas.