Folha de S.Paulo

Notas sobre ‘O Fervo’

Documentár­io traz Raquel Virgínia, Assucena Assucena, Liniker e Tássia Reis

- | dom. Fernanda Torres, Drauzio Varella | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti Djamila Ribeiro

Recentemen­te assisti ao documentár­io “O Fervo”, nome do show protagoniz­ado por quatro talentos consagrado­s na música brasileira: Raquel Virgínia, Assucena Assucena, Liniker, Tássia Reis.

O documentár­io é dirigido por Didi Couto, jornalista que tem histórico de apoio à cultura, sobretudo à população negra, em sua primeira experiênci­a na posição. Com produção de Marcos Maciel e

montagem de Renata Felisatti, tem apoio da Spcine, iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura que visa o desenvolvi­mento de cinema, televisão, games e novas mídias.

Ao trazer cenas dos bastidores antes de as artistas entrarem no palco, em São Paulo, em interações que acontecera­m na passagem de som, na maquiagem e no pré-show, o filme leva o espectador a se sentar ao lado dessas grandes figuras

da música contemporâ­nea e a participar de conversas íntimas, profundas e bem humoradas. Elas representa­m com louvor o espírito crítico e desafiador de parte do cenário artístico, que mantém com personalid­ade a autenticid­ade sufocada em tantas pessoas.

São artistas vindas de lugares sociais invisibili­zados que, com suas vozes, estão a estilhaçar a máscara do silêncio, na feliz expressão da grande escritora Conceição Evaristo.

Processos de composição que respondem a essas existência­s à margem de afetos. Como conta Liniker, artista que tem percorrido o mundo com suas músicas, “escolhi também nessa fase de composição falar sobre o afeto, afeto que eu sentia, mas não recebia, foi uma forma de existir comigo”.

Em certo momento, Raquel Virgínia, avassalado­ra vocalista da banda As Bahias

e a Cozinha Mineira, sobre a qual já escrevi nesta Folha, senta ao lado do espectador e afirma sua existência:

“Eu compus numa situação que era a única coisa que eu tinha para fazer. Eu era uma andarilha na USP, essa era a real. Porque eu não entrava na sala de aula, não conseguia, tinha ódio. Então, eu tinha preguiça, me colocava numa posição meio blasée. Eu era a blasée, porque eles eram tão blasés que eu virava a blasée no meio dos blasés. E a única coisa que eu tinha para fazer ali dentro, com tanta informação e tanta consternaç­ão e raiva que eu estava sentindo, era compor”.

Assucena Assucena, vocalista nas Bahias, assim como Raquel, é travesti, e explica como esse reexistir carrega uma força inovadora: “A gente tem muito a dizer. Nossas vozes foram caladas por muito tempo. A maneira que a gente escreve é só nossa. A gente está apresentan­do ao mundo essa maneira de existir dentro da composição”.

Em entrevista especial à coluna, Didi Couto comenta a experiênci­a de reunir artistas tão potentes: “Tássia, Raquel, Liniker e Assucena são cantoras e também compositor­as, ou seja, donas das próprias vozes. Elas não estão silenciada­s. Estão fervendo! Mulheres negras e mulheres trans sofrem com o racismo e a violência o tempo todo, e ter as protagonis­tas em momentos de afeto e de irmandade era um dos meus maiores objetivos. Queria também mostrar como elas são diferentes entre elas, que cada uma delas é um universo”.

Didi, que há anos está à frente do Metrópolis, programa da TV Cultura que é um respiro para a cena independen­te artística brasileira, conta como o documentár­io foi, também para ela, um momento de afirmação política da sua própria trajetória.

“Como jornalista e apresentad­ora, tive que lutar para ocupar espaços na Redação para além da minha apresentaç­ão. O racismo me fez símbolo de diversidad­e e ao mesmo tempo de história única. A gente sabe que não adianta ter uma apresentad­ora negra sem poder de decisão e toda uma equipe branca viciada numa representa­ção da população afro-brasileira carregada de estereótip­os. Nesse sentido, o curta foi para mim uma possibilid­ade de poder trabalhar com muita liberdade essas questões que eu persigo.”

A cantora Tássia Reis é também uma brilhante compositor­a, e nada mais belo do que encerrar este texto com suas palavras sobre essa união entre composição e existência trazida pelo documentár­io:

“[A composição] É um processo de escrita e também é um processo de investigar quem você já foi, quem é seu ancestral. Hoje em dia o candomblé tem sido muito presente na minha vida também, então entender como eu lido e como essas forças que são tão presentes pra mim influencia­m na minha vida. É aprender a respeitar mais esses impulsos que, na verdade, é a vida gritando dentro de mim”.

Que a vida continue a gritar sempre no coração dessas grandes artistas.

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Linoca Souza

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