Folha de S.Paulo

Queima de arquivo?

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

são paulo Não há, por ora, elementos objetivos a sustentar a tese de que a morte do miliciano Adriano da Nóbrega tenha sido uma operação de queima de arquivo para beneficiar o clã Bolsonaro. O chocante é constatar que essa hipótese é verossímil, a ponto de os principais órgãos de imprensa terem publicado textos em que ela é contemplad­a.

Não faz tanto tempo, seria inconcebív­el imaginar um presidente da República e seus filhos envolvidos nesse tipo de noticiário. Não que só tenhamos tido líderes impolutos, mas não era comum ver políticos de alto coturno com ligações tão abertas com a baixa criminalid­ade. Se as tinham, ao menos as escondiam.

Não os Bolsonaros. O próprio presidente fez, quando ainda era deputado federal, um discurso em que defendeu o miliciano de uma acusação de assassinat­o. O primeiro filho, Flávio, foi mais longe e, além de defendê-lo e condecorá-lo, contratou-lhe a mãe e a irmã. As familiares de Nóbrega só se desligaria­m do gabinete de deputado estadual de Flávio

em novembro de 2018.

Pelo menos parte dessas ligações perigosas apareceu nos jornais antes do pleito e, apesar disso, Bolsonaro foi eleito. Como explicar isso?

No que talvez seja um subproduto da polarizaçã­o, nós nos tornamos hipercétic­os e passamos a aplicar categorias jurídicas mesmo onde elas não cabem. É claro que todos são inocentes até prova em contrário, mas isso vale na esfera penal, não na vida em geral. Não é porque ainda não houve trânsito em julgado, que você precisa oferecer um cargo de diretor de “compliance” ao suspeito de corrupção ou pedir em casamento a mulher acusada de matar seus quatro maridos anteriores.

Para a sociedade funcionar bem, precisamos, muitas vezes, nos fiar em juízos morais sumários. O risco de que cometamos injustiças é real, mas pior, me parece, é colocar em cargos-chave da República pessoas que não têm qualificaç­ão ética para ocupá-los.

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