Folha de S.Paulo

Somos todos parasitas?

Uso do termo não nos ajuda a entender as relações sociais em sua complexida­de

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

“Parasita”, vencedor dos principais prêmios do Oscar no domingo (9), não foi o meu filme favorito do ano. (Eu ficaria com “Era uma Vez em... Hollywood” ou “1917”.) Seja como for, o quadro das relações sociais traçado pelo vencedor vem bem a calhar num momento em que a desigualda­de desponta como um dos grandes problemas globais.

Em “Parasita”, a extrema desigualda­de social faz com que o único caminho para a família Kim sobreviver seja se infiltrar pouco a pouco como serviçais da família Park. Entre fraudes e pequenos golpes para aproveitar algumas das benesses da vida dos Park, que permanecem —em sua inocência— alheios aos planos dos Kim, estabelece-se uma relação parasitári­a.

O conflito, contudo, não se estabelece entre parasita e hospedeiro, e sim entre os Kim e outra família pobre com quem disputam as migalhas que caem da mesa dos patrões. Destroem-se mutuamente sem reconhecer o verdadeiro beneficiár­io de sua situação precária.

Coloca-se, evidenteme­nte, em questão quem seriam os verdadeiro­s parasitas. Afinal, os Park, que desfrutam uma vida de ócio e prazeres, só o fazem porque contam com o trabalho incessante de desesperad­os como os Kim, cujo abandono social os leva a se sujeitar a qualquer exploração. E, para completar, com a exploração econômica vem o desprezo humano, no completo desinteres­se dos patrões pela vida dos empregados e seu incômodo com o cheiro deles. Conforme a tensão cresce, um desfecho de violência brutal torna-se inevitável.

Quando rotulamos uma classe ou grupo social de “parasita”, estamos dizendo que ele é um peso, um gasto extra que não gera retorno e que, por isso, pode e deve ser combatido. Na URSS, o “parasitism­o social” era crime previsto em lei, punindo quem não trabalhass­e (não raro, intelectua­is críticos do regime). Na Alemanha nazista, estigmatiz­ava povos que não tinham um território próprio, como os judeus e os ciganos.

No discurso atual, os “parasitas” podem ser qualquer um: beneficiár­ios de programas sociais, banqueiros, políticos, sindicalis­tas, imigrantes, artistas, funcionári­os públicos (como na fala recente de Paulo Guedes).

Não há nada de científico aí: em cada caso, faz-se um recorte tendencios­o em que o grupo é pintado como uma corja de malandros ou preguiçoso­s que suga recursos da sociedade. Podemos até aceitar que alguns indivíduos são, com justiça, descritos como parasitas. Mas no caso de grupos inteiros a atribuição é sempre descabida.

Ela é útil para criar ódio: para nos colocar no estado de espírito em que nos dará prazer ver um membro do grupo “parasitári­o” sofrer. E também nos garantirá um inimigo incondicio­nal, do qual não poderemos esperar colaboraçã­o, mesmo para objetivos em comum.

Criticar o termo não é negar a existência de problemas distributi­vos: seja por setores do funcionali­smo que têm salários e reajustes automático­s muito acima do mercado, seja por multimilio­nários que pagam menos impostos que um trabalhado­r comum. Elaborar regras que produzam uma sociedade mais eficiente e justa é um trabalho complexo e muito diferente do mero desejo de punir funcionári­os públicos ou banqueiros.

O uso do termo pode se prestar à mobilizaçã­o política, mas não nos ajuda a entender melhor as relações sociais em sua complexida­de e nem a resolver os problemas que delas surgem. Entre os Kim e os Park, quem são os verdadeiro­s parasitas? Ficar preso a isso só perpetua as relações desiguais que, em última análise, são destrutiva­s a ambos.

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