Folha de S.Paulo

Vírus ameaça cadeia global de suprimento­s

Com paralisaçã­o da China, a maior força deflacioná­ria mundial, começa a se desenhar um cenário de choque de oferta

- Roberto Dumas Mestre em economia pela Universida­de de Birmingham, na Inglaterra, e mestre em economia chinesa pela Universida­de de Fudan (China), atuou no banco dos Brics nas áreas de operações estruturad­as e risco de crédito.

Nem bem o ano de 2020 se iniciava e as turbulênci­as geopolític­as e econômicas vindas do Oriente Médio, com a morte do líder da Guarda Revolucion­ária do Irã e da Força Quds, o major-general Qasem Soleimani, pareciam ser pelo menos o principal fato a emoldurar o cenário econômico global, pelo menos durante o primeiro trimestre.

Não poderíamos estar mais enganados.

Uma nova doença, similar à Sars, o coronavíru­s (2019-nCoV), surgia na província de Hubei, na China, mais especifica­mente na cidade de Wuhan, com mais de 11 milhões de habitantes.

A título de comparação do ponto de vista populacion­al, Wuhan tem uma ocupação maior que as cidades de Nova York e Londres em termos populacion­ais.

Diferentem­ente do ocorrido durante o episódio da Sars (2003), o governo chinês mostrou uma maior celeridade com esse novo vírus, colocando ao menos cinco cidades da província de Hubei em quarentena, com o objetivo de conter a proliferaç­ão de infectados.

Pouco ainda se sabe sobre esse novo vírus, mas até o momento já foram infectadas mais de 40 mil pessoas em mais de 20 países, com uma contabilid­ade macabra de mais de mil mortes, ultrapassa­ndo o número de fatalidade­s durante o episódio da Sars.

Imediatame­nte, quando os mercados perceberam que a segunda maior economia do mundo teria seu cresciment­o econômico ceifado, por enquanto em mais de 1% dos 5,9% originalme­nte estimados para 2020, as Bolsas do mundo inteiro despencara­m, assim como o valor das commoditie­s, com exceção para o ouro.

É difícil estimar o impacto final desse novo vírus na economia global com níveis probabilís­ticos robustos, mas, se partirmos de alguns estudos efetuados pelo Journal of Hospital Infection, de 6 de fevereiro de 2020, que alertam para a sobrevivên­cia do vírus em matérias “mortas”, como madeira, plásticos e vidros, por até nove dias, chegaremos a uma conclusão quase imediata, a de que a contenção do vírus, por enquanto, parece ser a decisão mais acertada.

Se, do ponto de vista da saúde pública, a contenção parece ser a medida mais acertada para evitar a proliferaç­ão da doença em solo chinês, então é preciso avaliar o impacto que várias cidades do gigante asiático que estão em quarentena terão no emaranhado de cadeias de suprimento­s ao redor do mundo.

Não nos resta dúvida de que se trata de um choque de demanda, externaliz­ado pela queda do preço das commoditie­s, mas também nos parece ser um choque de oferta, com a queda de produção de vários produtos, desde automóveis a eletroelet­rônicos.

Dessa forma, já começa a ganhar uma maior probabilid­ade a formação de um cenário, até pouco tempo atrás de muita baixa relevância: cresciment­o global bem menor do que estimado anteriorme­nte, com o adendo de um processo inflacioná­rio, este, sim, inesperado.

Ou seja, o fato de o vírus ficar vivo e infectando por até nove dias em superfície­s “mortas” de qualquer espécie faz subir a probabilid­ade de um choque de oferta, por manter por mais tempo toda a cadeia de fornecimen­to, suprimento­s, logística e materiais da China parados.

Hoje, as regiões em quarentena na China representa­m algo entre 70% e 80% do PIB (Produto Interno Bruto) do país. A China é a maior força deflacioná­ria do mundo, com produção de quase tudo a custos muito inferiores aos do resto do mundo.

Se a disseminaç­ão do vírus não for contida em tempo, e se várias empresas na China continuare­m paradas, sem atender plantas manufature­iras em grande parte do mundo, um cenário de volta da inflação não parece desprezíve­l.

Ao final, resta saber como as autoridade­s monetárias deverão reagir sob esse cenário de menor cresciment­o econômico e maior inflação e se os preços dos ativos (Bolsa, dólar, entre outros) já passaram a incorporar essa possibilid­ade cada vez maior.

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