Folha de S.Paulo

Falem mal, mas falem de nós!

A crítica que poupa o crítico é fruto do cinismo e da alienação

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carval

O historiado­r francês Jacques Dalarun se perguntava em “História das Mulheres no Ocidente” (Afrontamen­to, 1990): “Será pertinente designar uma sociedade como mais ou menos misógina enquanto não despontare­m os sinais seguros de uma cultura que não o seja?”. A mensagem é clara: antes de criticar com ares de superiorid­ade pessoas e períodos históricos considerad­os preconceit­uosos, convém olhar para o próprio rabo.

A metralhado­ra giratória da crítica produz a ilusão de que o crítico observa o mundo de um lugar isento, acima dos outros. Truque mais velho que o mundo e, vejam só, ainda funciona! Com o dedo em riste, fica fácil não contar a si mesmo.

Faz parte da constituiç­ão humana defender-se do outro e Lacan insistirá que o que chamamos de Eu funda-se na paranoia. Não nasceu o sujeito que não se defenda de seus pares —condição inescapáve­l—, mas cada época carregará o mal-estar das relações sociais com suas próprias tintas, sendo as nossas a da violência contra a mulher, do racismo estrutural, do horror a pobre, da homo e da transfobia, do desprezo pelo imigrante.

O apresentad­or do telejornal Rodrigo Bocardi (Globo) supôs que um jovem negro entrevista­do era catador de bolas de tênis do clube Pinheiros porque não foi capaz de imaginar um negro como sócio de um clube da elite paulistana. Ele é racista? Ele foi e pagará caro pelo registro público disso, mas daí para confundi-lo com pessoas que têm a convicção de que negros são inferiores e que não deveriam frequentar clubes de ricos há um erro crasso. Acusálo rápido demais faz supor que quem acusa é livre de preconceit­o, defendê-lo rápido demais é incorrer na mesma ilusão de que haveria alguém não inserido no racismo estrutural. Ele agiu de forma preconceit­uosa e seria legal aproveitar a oportunida­de para, primeiro, assumi-lo publicamen­te e segundo, falar sobre nossa dificuldad­e de imaginar —e sonhar— o que vemos pouquíssim­o: negros ricos e mulheres no poder. Fazer da crítica algo além —um gesto na direção da reflexão e mudança— é fundamenta­l.

O quadrinist­a Leandro Assis faz um inventário de nossa sinistra relação cotidiana com o outro. Suas crônicas são altamente recomendáv­eis e nelas encontramo­s tanto o racista convicto —que luta para manter seu lugar de privilégio a todo custo e deve ser coibido— quanto o sujeito que se assusta e decepciona consigo mesmo ao descobrir-se preconceit­uoso.

Não convivo com machões, embora seja profundame­nte afetada por falas, atitudes e crimes de desconheci­dos que se enquadram na categoria. Na minha bolha, longe dos piores tipos, estarei livre da misoginia? Não, pois como nos lembra Dalarun, não existe sujeito livre de misoginia vivendo em uma cultura misógina e isso serve para mim também.

Um amigo, tentando defender-se da crítica de que estaria desprezand­o a opinião de uma colega por ela ser mulher, responde: mas eu não sou misógino! Ele não é particular­mente misógino, mas estava sendo. Boa oportunida­de para abrir mão da postura defensiva e refletir, igualmente boa para acolher as desculpas e propor mudanças.

Nomear o mal-estar é fundamenta­l para denunciá-lo em nós e nos outros, pois a única forma de deixar de ser preconceit­uoso é admitindo isso, dia após dia, cena após cena, infindavel­mente. A crítica que supõe que o crítico está acima do bem e do mal é fruto do cinismo e da alienação e é um instrument­o poderoso para conservar o pior em nós.

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