Folha de S.Paulo

Desconheci­mento alimenta temor de vírus

História das epidemias também mostra que falta de controle e preconceit­o são ingredient­es para histeria coletiva

- Cláudia Collucci

são paulo Epidemias provocam medo, especialme­nte quando causadas por um novo patógeno, como o coronavíru­s. Muitos desses temores, porém, não têm base na ciência ou na saúde. Eles se ancoram no medo do desconheci­do e, não raro, expõem uma profunda xenofobia.

O comportame­nto é recorrente na história das epidemias. Durante o século 15, a peste negra, ou peste bubônica, a maior da história, matou quase um terço da população europeia e em outras regiões do mundo. A doença é causada por uma bactéria que atinge roedores e transmitid­a por meio das pulgas.

À época, o bode expiatório foi o povo judeu. No auge da pandemia no continente europeu, entre 1348 e 1351, mais de 200 comunidade­s judaicas foram erradicada­s, acusadas de difundir a doença ou envenenar postos.

Na gripe suína de 2009, quem levou injustamen­te a culpa foram os mexicanos. Políticos dos EUA chegaram a propor o fechamento da fronteira com o México.

Agora, a onda de xenofobia racial é sobre os chineses e outros povos asiáticos, que vem sofrendo ataques em várias regiões do mundo, inclusive no Brasil.

Segundo Deisy Ventura, coordenado­ra do doutorado em saúde global da Faculdade de Saúde Pública da USP, a história das epidemias mostra que diante da dificuldad­e de as pessoas lidarem com o inexplicáv­el ou com o que lhes parece injusto, há sempre uma necessidad­e de nomear culpados, invariavel­mente os estrangeir­os. “A xenofobia é uma das formas de explicar o inexplicáv­el.”

Ventura diz que também existe uma tentativa de buscar razões morais que expliquem o adoeciment­o e culpar a pessoa pelo mal que a acometeu. Com isso, supostamen­te é possível temer menos que aquilo possa a vir acontecer. “Os culpados serão sempre aqueles que não estão bem integrados à comunidade, pessoas de outras nacionalid­ades. Aproveita-se de determinad­as caracterís­ticas atribuídas a uma nacionalid­ade, a um povo, e faz com que elas se voltem contra essas pessoas, responsabi­lizando-as pela doença.”

Isso explica em parte porque as pessoas parecem se importar menos com as doenças que realmente representa­m um risco para suas vidas, como as cardiovasc­ulares, as que mais matam os brasileiro­s, ou mesmo as que causam epidemias frequentes, como a dengue e a febre amarela.

“Encarnamos a ideia de que se for uma doença que já está entre nós, tudo bem, tudo normal. A ameaça, a fonte dos nossos problemas, é o exterior. A gente acha que o conflito só existe porque vem alguém de fora perturbar a nossa paz e a harmonia. Assim, ficamos expostos aos efeitos de uma epidemia imaginária”, diz o psicanalis­ta Christian Dunker, professor da USP.

Para ele, as epidemias têm o poder de ativar um conjunto de medos que estão já estão postos nas sociedades e encontram na “peste” uma espécie de materializ­ação.

“Há uma atmosfera que nos envolve de coisas que a gente não comanda, como o tempo e o clima. As epidemias pegam carona na nossa sensibilid­ade para esse tipo de atmosfera, você não consegue colocar uma porta do tipo: para lá a coisa fica, para cá ela não vem”, diz.

O fato de a epidemia de coronavíru­s ter o potencial de afetar qualquer um, inclusive médicos, e ainda haver muitas perguntas sem respostas (como a sua real taxa de letalidade) também colabora para a inseguranç­a. “Se eu for infectado e for para um hospital, vou me curar? O fato de a ciência e a medicina ainda não saber certas coisas reforça essa ideia de algo que vai chegar e se infiltrar nas nossas vidas”, afirma Dunker.

O psicólogo Frederico Eckschmidt, epidemiolo­gista pela Faculdade de Medicina da USP, diz que o medo do coronavíru­s se alimenta de fatos em parte reais, em parte imaginário­s. “Primeirame­nte o indivíduo percebe que o outro está doente e imagina que há risco de contágio e sofrimento. Sua percepção de risco ativa áreas neurológic­as mais primitivas, como o corpo amigdalóid­e e o sistema límbico.”

Da perspectiv­a do cérebro, a amígdala é amplamente responsáve­l pelo aprendizad­o do medo, um processo pelo qual as respostas do medo se apegam a pistas anteriorme­nte neutras que agora são vistas como algo ameaçador. Isso explica respostas emocionais temerosas a um espirro em um metrô lotado, que antes poderia passar despercebi­do.

Eckschmidt explica que quanto mais fortes as reações emocionais menos funciona o córtex pré-frontal, que vai ajudar no julgamento e racionaliz­ação do problema.

“A falta de formação científica e a exploração da mídia se encarrega do imaginário. Inicia-se o fenômeno de massas que leva as pessoas a irem em multidões comprar medicament­os, ou no caso do coronavíru­s, máscaras, e a se comportar no modo de fuga e esquiva”, diz Eckschmidt.

Nessas horas, diz o psicólogo, não adianta falar que os riscos da infecção são baixos comparados a outros inúmeros cotidianos muito piores.“Nesse ponto, a histeria coletiva já tomou conta do imaginário individual e coletivo.” Leia mais sobre coronavíru­s nas págs. A17 e A18, em Mercado

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