Folha de S.Paulo

Lidando com a mente que se vai

Você daria todo o dia a notícia de que o ente querido tem mal de Alzheimer?

- Suzana Herculano-Houzel Bióloga e neurocient­ista da Universida­de Vanderbilt (EUA)

Quanto mais eu convivo com o pessoal do outro lado do mundo, mais me dou conta de que brasileiro­s e chineses são muito parecidos. Vivemos em família, falamos todos ao mesmo tempo, cuidamos uns dos outros porque achamos perfeitame­nte normal que os outros precisem da gente — porque, afinal, antes de nos tornarmos indivíduos, somos parte de um todo que cuida de nós.

O que acontece, então, quando a mente de alguém querido adoece? Nos EUA, descobri que só se pode buscar cuidado médico para familiares quando o cuidado requer ambulância ou polícia. Antes disso, entrar em contato com o médico é violação de privacidad­e.

Obviamente não é o caso na China, ou a premissa do filme “The Farewell”, da chinesa Lulu Wang, seria inviável. No filme, uma família descobre que a matriarca, velhinha, tem câncer de pulmão terminal, mantém a doença em segredo da própria paciente e se reúne para celebrá-la em vida, sob pretexto de uma festa de casamento. Não há papo sobre autorizaçõ­es ou consentime­nto: o médico conversa com a família e ela decide o que fazer. Enquanto isso, a paciente vive sua vida, sem se estressar com a tosse ocasional e contente de ter a família ao redor, distribuin­do conselhos.

Não estou apoiando nem criticando a história. Especialme­nte em tempos de polarizaçã­o, acho importante lembrar que as coisas são mais complicada­s, que há tons de cinza, e reservar a cada um e sua família o direito de decidir por si mesmo.

Se a situação médica de “The Farewell” seria impensável nos EUA por causa da legislação que busca proteger médicos de litígio, ainda assim a vida garante complexida­de para todo mundo. Exemplo: com a expectativ­a de vida pra lá de 80 anos, é inevitável que o mal de Alzheimer se faça cada vez mais presente. O problema é que são os outros que notam essa doença e sofrem primeiro; o doente pode passar o resto de seus dias sem se saber doente. Por isso, cada vez mais cuidadores advogam por aplicar as técnicas teatrais do improviso: entrar no jogo, não contrariar e jamais dizer “você já me perguntou isso três vezes”.

Sem memória recente, a pessoa querida com Alzheimer vai perguntar a mesma coisa três vezes na mesma conversa, repetir o mesmo comentário sincero, perguntar pelo Fulano, que já morreu, e achar estranho que o cachorro esteja borocoxô, comportand­o-se como um velhinho.

E aí, você lhe dá todos os dias a notícia de que ela tem Alzheimer? Ou aceita que, como não tem jeito, o melhor é limitar o sofrimento a só você? Com sorte, o que quer que você diga terá sido esquecido no dia seguinte. Antes de decretar que isso ou aquilo é antiético, que tal se perguntar: no final das contas, para quem faz diferença?

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