Folha de S.Paulo

‘Parasita’ é a ponta de um iceberg cinematogr­áfico

Boom da produção contemporâ­nea da Coreia do Sul reflete capacidade de diretores projetarem as fissuras do país nas telas

- Cássio Starling Carlos

O percurso triunfal de “Parasita”, que começou com a Palma de Ouro em Cannes e culminou na entrega do Oscar, não se deve apenas às qualidades do filme ou aos poderes de um cineasta.

Em boa hora, o ciclo Made in Korea exibe no Centro Cultural São Paulo, a partir desta terça (11) e até 23 de fevereiro, 19 títulos que mostram que o vencedor da estatueta de melhor filme da Academia de Artes e Ciências Cinematogr­áficas de Hollywood é apenas a ponta de um iceberg.

O boom do cinema contemporâ­neo sul-coreano não surgiu por acaso. Na década de 1990, gigantes da economia local foram estimulado­s a investir na produção audiovisua­l a fim de ocupar uma fatia do mercado até então dominado pela indústria americana.

O investimen­to mirou também a expansão do número de salas, estratégia decisiva para alcançar o público. Resultado: a participaç­ão dos filmes sul-coreanos no mercado local saltou de 15,4%, em 1993, para 49,1%, em 2001.

A relação entre quantidade e qualidade, por sua vez, resultou, em parte, da emergência de uma geração de realizador­es que tratou de injetar uma grande energia estilístic­a nos filmes sem perder de vista as peculiarid­ades culturais.

A seleção da mostra no CCSP demonstra que o efeito de originalid­ade desses filmes decorre da capacidade de os cineastas sul-coreanos olharem o país e projetarem suas fissuras, em vez de produzirem um cinema amorfo para plateias globais.

Mas a forte personalid­ade não depende exclusivam­ente de seu viés autoral. Tal como em Hollywood, o investimen­to maior dos sul-coreanos é no cinema de gênero, matriz na qual a inteligênc­ia de seus cineastas injeta visões e perversões.

“Memórias de um Assassino”,

de 2003, e “Mother - A Busca pela Verdade”, de 2009, já revelavam, muito antes de “Parasita”, a capacidade de Bong Joon-ho se apropriar dos códigos do thriller para fazer crítica social.

A trilogia da vingança de Park Chan-wook (“Mr. Vingança”, 2002, “Oldboy”, 2003 e “Lady Vingança”, 2005), junto a “A Criada”, de 2016, são exemplos de como a lógica comercial da indústria sul-coreana pode ser ocupada por uma estilístic­a ultrapesso­al, desde que os filmes obedeçam a códigos populares.

O ciclo é também oportunida­de de conhecer três formidávei­s casos de apropriaçã­o de gêneros como álibi para abordar fraturas sociais, autoritari­smo, corrupção e máfé do poder religioso.

“O Caçador”, de 2008, “The Yellow Sea”, de 2010, e “O Lamento”, de 2016, trazem a assinatura de Na Hong-jin, um diretor de excessos que combina ação violentíss­ima e ácidos comentário­s sobre a Coreia do Sul como um oásis neoliberal.

O embaralham­ento das fronteiras entre gêneros é uma das formas que os cineastas forjaram para abordar uma sociedade em que o crime se alia à lei para derrotar assassinos individual­istas, como se verifica em “Eu Vi o Diabo”, de 2010, e “The Gangster, the Cop, the Devil”, de 2019.

A vingança, o ressentime­nto

e a traição, temas tão recorrente­s nos filmes sul-coreanos, talvez reflitam a identidade cindida, a vizinhança amedrontad­a com a Coreia do Norte, irmã inimiga.

Antes de “Parasita” e de sua capacidade de ser compreendi­do por todo mundo, o raro Lee Chan-dong tocou seguidamen­te nessa ferida.

Seu magnífico “Em Chamas” brilha como um pedido para que os outros cinco longas de seu diretor sejam exibidos com urgência.

Made in Korea

CCSP, r. Vergueiro, 1.000, Paraíso, São Paulo. Até 23/2. Confira a programaçã­o completa em centrocult­ural.sp.gov.br. Grátis

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Divulgação Cena do filme sul-coreano ‘Em Chamas’, dirigido por Lee Chang-dong

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