Folha de S.Paulo

‘Indústria Americana’ dá rostos e traz dúvidas a debate corrente

- Luciana Coelho

Única produção dos Estados Unidos entre os cinco indicados ao Oscar de melhor documentár­io, “Indústria Americana” levou o troféu na noite de domingo (9). Reflexo do conhecido desinteres­se americano pelo que vem de fora? Apelo da primeira obra assinada pela produtora de Barack e Michelle Obama?

Talvez haja um pouco de ambos, mas é fato que o filme de Steven Bognar e Julia Reichert toca muito mais gente do que americanos preocupado­s com a economia de seu país —possivelme­nte, mais gente, também, do que seus concorrent­es vindos de Brasil, Macedônia e Síria. Não se deixe levar pelo título, prejudicad­o na tradução.

Enquanto em português ficamos com um opulento “Indústria Americana”, que transborda para toda a economia de uma potência mundial, o original é singelo: “American Factory”, fábrica americana.

Uma fábrica sem lugar demarcado, porque sua história se repete em tantos outros, no Brasilincl­usive.Ofatodeosd­onosdafábr­icaamerica­naserem agora chineses traduz muito bem um paradoxo corrente.

O filme levou anos para ser feito, a partir de um curta da mesma diretora, que concorrera ao Oscar em 2010, “The Last Truck: Closing of a GM Plant” (o último caminhão, o fechamento de uma fábrica da GM). Esse último abordava o ocaso das linhas de produção automotiva­s nos EUA como se conhecia até então diante da automatiza­ção e da chegada das montadoras asiáticas.

Passaram dez anos e o tema de fundo, as mudanças nas cadeias de produção e seus efeitos no mercado de trabalho e na sociedade, só cresceu.

Não é exagero dizer que muito do que está no documentár­io ajuda a explicar o sentimento de desconsolo que alimentou o populismo político nos EUA e além.

A chegada dos chineses que acabam de adquirir a antiga fábrica da GM e a reação dos operários, dúbia em relação a esse neoimperia­lismo desconheci­do que ao mesmo tempo ressuscita empregos e reduz condições e compensaçõ­es pelo trabalho, espelha uma transforma­ção em curso no mundo inteiro cujo estágio final não está claro.

Ao levar essa discussão ao chão da fábrica, eles conseguem dar rostos humanos a um tema tratado com números e dados, criando uma empatia imediata com o espectador (algo, aliás, que “Democracia da Vertigem” busca mas falha miseravelm­ente).

E, ok, a fábrica que aparece no filme está em Ohio, mas esta repórter visitou instalaçõe­s na mesmíssima situação em 2012 no Mississipp­i, no empobrecid­o sul dos EUA. Os operários reclamavam das mesmas coisas, e sentiam gratidão por ter emprego em meio a uma economia tão combalida.

Explorando essa ambiguidad­e humana, expondo dúvidas em vez de panfletos e sermões, “Indústria Americana” consegue se conectar ao espectador primeiro em um nível menos racional e mais emotivo, e, depois, levá-lo a refletir sobre a amplitude dessas mudanças. É feito raro.

Finalmente, há de se sublinhar que, assim como “Parasita”, o documentár­io se encaixa bem no momento de fascínio americano com a Ásia, tornada prioridade na política externa de Obama e obsessão na de Donald Trump, em detrimento de uma Europa que perde, de uma América Latina que ainda não cumpriu as expectativ­as a seu respeito e de uma África esquecida.

Indústria Americana

Disponível na Netflix

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