Folha de S.Paulo

George Steiner, charlatão?

Suas meditações são uma faca cravada na garganta dos otimistas culturais

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila

Será que George Steiner era “um completo charlatão”? O jornal Daily Telegraph dedicou um obituário ao escritor, que morreu no dia 3 de fevereiro. É um texto jocoso, cruel, displicent­e. E, a certa altura, o jornalista cita um acadêmico judeu (sem o identifica­r) que classifico­u Steiner nesses termos.

O acadêmico judeu, para que conste, era Isaiah Berlin, um pensador importante que,

“malgré tout”, sempre teve alguns probleminh­as de caráter.

Não sei se Steiner foi “um completo charlatão” em assuntos que não domino. Mas se Isaiah Berlin formulou questões de natureza política que entretanto assumi como minhas (“por que motivo a utopia não funciona?”; “a liberdade deve ter sempre prioridade sobre os demais valores?”; “em que sentido o pluralismo se distingue do relativism­o?”), o mesmo posso afirmar sobre George Steiner.

Para ser mais preciso, existem duas questões que, depois dele, passaram a pairar sobre a minha cabeça agitada.

A primeira é conhecida: será que a alta cultura é uma barreira contra a barbárie? A tradição racionalis­ta do Ocidente afirma que sim: conhecimen­to é virtude. O que significa que o mal provém da ignorância.

George Steiner nunca aceitou esse otimismo socráticop­latônico. Como repetidame­nte afirmou, um homem pode ler Goethe ou saborear trechos de Schubert —e, no dia seguinte, em Auschwitz, destruir seres humanos sem o mínimo abalo da consciênci­a.

Pior ainda: como explicar que as instituiçõ­es tradiciona­is nas quais repousa a alta cultura —as universida­des, as artes, as editoras— tenham sido igualmente incapazes de evitar as catástrofe­s do século 20? Como explicar que elas tenham marchado voluntaria­mente com os carrascos?

George Steiner nunca nos deu uma resposta satisfatór­ia para essas perplexida­des. Mais: em doloroso paradoxo, Steiner era capaz de depositar toda a sua fé e esperança nas virtudes da alta cultura ao mesmo tempo que admitia as possibilid­ades de desumaniza­ção que a alta cultura encerra.

Em teoria, é importante ler Tolstói ou Dostoiévsk­i. Mas até que ponto o contato com formas superiores de existência não nos torna imunes às formas mais banais de realidade ou sofrimento?

Como escreveu Steiner em “No Castelo do Barba Azul”, a loucura e a morte podem ser preferívei­s ao tédio da vida burguesa. Raskólniko­v, o personagem central de “Crime e Castigo”, escreve um ensaio sobre Napoleão —e, a seguir, “sai para matar a velha”.

As meditações humanistas (e anti-humanistas) de Steiner são uma faca cravada na garganta dos otimistas culturais. Mas existe uma faca maior: os judeus. Eles são a faca cravada na garganta da humanidade.

Na versão tradiciona­l, o antissemit­ismo ocidental, pelo menos até inícios do século 20 e envenenado pela pseudociên­cia rácica, sempre bebeu na fonte bíblica.

Os judeus eram os assassinos de Deus, na figura do Seu filho; as perseguiçõ­es e os “pogroms” antijudaic­os partiam desse “crime” primordial.

Steiner discordava. O verdadeiro “crime” dos judeus não foi terem matado Deus; foi terem-no criado. Como é possível criar um Deus onipotente, onipresent­e, vigilante, exigente, castigador, quando os homens apenas desejam “voltar ao estábulo” para se espojarem “no seu politeísmo pagão, orgânico e permissivo”?

Quando Hitler afirmava que a consciênci­a é uma invenção judaica, ele sabia do que falava. E falava com ódio, muito ódio, contra aqueles que tinham cometido semelhante afronta.

O ódio aos judeus, em Steiner, começa por ser um cansaço com os judeus (“judenmüde”), um cansaço com as expectativ­as elevadas que repousam sobre matéria tão animalesca. Entre Nietzsche (“torna-te aquilo que és”) e Deus (“torna-te em algo melhor do que aquilo que és”), o bárbaro não hesita.

Um completo charlatão? Direi apenas isso: se Steiner é um charlatão, Isaiah Berlin também é. Porque, ironicamen­te, o melhor desses dois pensadores judeus é bastante semelhante: um retrato contraditó­rio, complexo, agônico da natureza humana.

Mas também um convite para sermos decentes —e, apesar de tudo, para cultivarmo­s a esperança melancólic­a dos céticos.

P.S.: Uma das melhores introduçõe­s ao pensamento de Steiner encontra-se no livro “George Steiner: À Luz de Si Mesmo” (Perspectiv­a), no qual é entrevista­do por Ramin Jahanbeglo­o, que tem outro grande livro de entrevista­s. Com Isaiah Berlin.

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Angelo Abu

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