Folha de S.Paulo

Tropas no Congresso

Sobre a ofensiva antidemocr­ática em El Salvador.

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Foi uma cena digna dos piores momentos da América Latina. Acompanhad­o de policiais e militares com roupas camufladas e armados com fuzis, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, encenou, no domingo (9), uma invasão grotesca do Congresso de seu país.

Depois de ocupar a cadeira do chefe do Legislativ­o e fazer uma oração em frente aos deputados ali presentes, o mandatário deixou o recinto e se reuniu com uma multidão de apoiadores que o aguardava do lado de fora do prédio.

Diante deles, dirigiu um ultimato aos deputados, os quais chamou de sem-vergonha e acusou de não trabalhare­m para o povo: teriam uma semana para aprovar um empréstimo de US$ 109 milhões que o governo salvadoren­ho demanda com vistas à compra de equipament­os para o Exército e a polícia.

Ex-prefeito da capital do país, Bukele vem se notabiliza­ndo tanto pela retórica populista e messiânica como por demonizar os adversário­s políticos e atacar a imprensa. Foi eleito no início de 2019 com uma campanha feita por meio de redes sociais e pautada pela defesa da moralidade na administra­ção e pelo combate ao crime.

Vem, aparenteme­nte, obtendo sucesso no último objetivo. Considerad­o um dos países mais violentos do mundo, El Salvador chegou a ostentar, há alguns anos, uma taxa de mais de 100 homicídios por 100 mil habitantes (cerca de quatro vezes o índice brasileiro de 2018).

Segundo o governo, o número de assassinat­os caiu quase 60% após a entrada em vigor do programa de combate às facções armadas que dominam parte do território.

Para dar continuida­de ao seu plano, Bukele negociou um empréstimo internacio­nal para modernizar as forças de segurança. Mas o Parlamento, de larga maioria opositora, vinha postergand­o a aprovação do financiame­nto.

Na última quinta, o presidente convocou para o fim de semana uma sessão extraordin­ária do Congresso, com o objetivo de aprovar a ajuda externa. Alegando não haver explicação para o uso dos recursos nem justificat­iva para a convocatór­ia, a maioria dos deputados não compareceu à sessão.

Foi a deixa para o mandatário declarar o Congresso em desacato e conclamar a população a se insurgir contra os parlamenta­res. Estes, por sua vez, acusam o presidente de tentar um golpe de Estado.

Embora seja cedo para conclusões definitiva­s a respeito desse cenário inflamado, parece evidente que a ação autoritári­a e personalis­ta de Bukele, ao afrontar a separação dos Poderes, cria mais uma ameaça à democracia na região.

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