Gestão Doria faz censura de livros para presídios
Obras de García Márquez e Camus estavam no pacote; gestão nega veto
O governo de João Doria (PSDB) vetou lista de livros em projeto de estímulo à leitura em penitenciárias de São Paulo. A gestão nega censura e diz não fazer juízo de valor das obras escolhidas.
são paulo O governo João Doria (PSDB) vetou uma lista de livros de um projeto de estimulo à leitura em penitenciárias do estado de São Paulo. Na relação, havia obras do colombiano Gabriel García Márquez, do franco-argelino Albert Camus, do cubano Leonardo Padura e da norte-americana Harper Lee, entre outros.
Procurado pela Folha ,ogoverno do estado diz que não houve censura ou veto e que não faz juízo de valor dos livros escolhidos pelo projeto.
O programa Remição em Rede, parceria do governo com a empresa Jnana Consultoria, o grupo Mulheres do Brasil e as editoras Record, Planeta, Todavia e Boitempo, implementou clubes de leitura em dez penitenciárias na gestão Márcio França (PSB).
Na primeira fase do projeto, de setembro de 2018 a agosto de 2019, houve participação de 200 presos. Além de estimular a leitura, o programa contribuiu para a remição da pena —possibilidade de o presidiário abreviar o tempo de cumprimento de sua pena por meio do estudo.
Cada livro lido pode diminuir a pena em quatro dias. O preso pode ler 12 livros por ano e conseguir com isso até 48 dias de remição da pena.
Para isso, ele também precisa escrever uma resenha, que é encaminhada ao juiz regional para que seja efetivada a diminuição da pena.
Em julho de 2019, o governo do estado renovou o programa por mais 12 meses, a fim de ampliar o alcance para 400 presos e incluir dez presídios.
No mês seguinte, as quatro editoras doaram 240 exemplares de 12 títulos, que seriam acrescentados à biblioteca circulante já existente.
Os livros, no entanto, não foram remetidos pela Funap aos presídios. Em dezembro, as organizadoras do projeto solicitaram reunião com a fundação, órgão do governo responsável por desenvolver programas sociais nos presídios, para entender o problema.
“Avisaram ali que a lista de livros havia sido riscada na íntegra pelo diretor-executivo da instituição, o coronel Henrique Pereira de Souza Neto”, diz a educadora Janine Durand, articuladora do projeto, de custo zero ao governo.
“Depois, falaram que o problema estava concentrado em três obras, mas não nos informaram em quais”, afirma. “Nos deixou estupefatos.”
Em razão dos protestos contra a censura, disse Janine, a Funap pediu o envio de uma mensagem de texto com uma justificativa para a escolha de cada um dos livros, o que ocorreu na mesma semana.
A resposta veio no dia 3 de dezembro. Reginaldo Caetano da Silva, superintendente da diretoria de Atendimento e Promoção Humana da Funap, declarou que a justificativa seria encaminhada à chefia de gabinete da instituição.
No texto, o diretor afirma que havia sido indicado “um título que, diante das novas propostas da gestão atual, não atende ao que se espera para a população atendida pela Funap”. Ele não revela no email qual é a obra censurada.
A lista tem 12 livros: “As Cartas que Não Chegaram” (Maurício Rosencof ); “Vá, Coloque Um Vigia” (Harper Lee); “Crônica de Uma Morte Anunciada”, (Gabriel Garcia Márquez); “O Estrangeiro” (Albert Camus); ”O Fim de Eddy” (Édouard Louis); “O Amor que Sinto Agora” (Leila Ferreira); “Bonsai” (Alejandro Zambra); “Caderno de Memórias Coloniais” (Isabela Figueiredo); “O Quarto Branco”, (Gabriela Aguerre); “Enquanto os Dentes” (Carlos Eduardo Pereira); “Cabo de Guerra”, (Ivone Benedetti); e “Paisagem de Outono” (Leonardo Padura).
As obras compõem um amplo leque de temas e pode ser difícil apontar o que teria desagradado a direção da Funap.
“Cabo de Guerra”, da Boitempo, tem como narrador um agente de governo infiltrado nos grupos de esquerda durante a ditadura militar brasileira. Crítica publicada na Folha aponta que “o que mais atordoa não é a brutalidade dos militares, mas a passividade do protagonista. A ausência de culpa sobre os atos que levam à morte de diversas pessoas é transtornante”.
Padura é um dos mais importantes escritores cubanos de sua geração. “Paisagem de Outono”, da Boitempo, faz parte da tetralogia “Estações Havana”, na qual as investigações criminais do protagonista Mario Conde são utilizadas por Padura para desvelar sua visão da sociedade de Cuba.
“O Fim de Eddy”, da editora Tusquets, é o relato de um processo de formação “marcado pela descoberta sofrida da homossexualidade num ambiente social asfixiante”, segundo resenha na Folha.
Marisa Cesar, CEO do Grupo Mulheres do Brasil, afirma que “a leitura ajuda no desenvolvimento e no despertar do estudo”. Ela lamenta a censura.
Criado em 2013 por 40 mulheres de diferentes segmentos, o grupo é presidido pela empresária Luiza Helena Trajano, da rede Magazine Luiza.
Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Planeta, afirma que censurar um livro é nocivo, abominável e também pouco inteligente. “Acaba promovendo a própria obra”, diz. Ele cita o caso Paulo Freire: “Com a perseguição absurda que ele sofre hoje, seus livros estão vendendo muito mais”.
Em dezembro, diante da medida adotada pelo governo, as organizadoras do projeto solicitaram a devolução dos livros doados. “Agradecemos a colaboração e permanecemos à disposição para qualquer outro esclarecimento”, respondeu a Funap.
Administração diz que não faz juízo de valor das obras OUTRO LADO
Em nota, a gestão João Doria afirma que “não faz juízo de valor dos livros” e ressalta que
“não há nenhum tipo de censura ou veto a livros”.
“As publicações são dos mais diversos gêneros literários, origens e matizes ideológicos. Entre os autores estão George Orwell, Franz Kafka, Gabriel García Márquez, Ernest Hemingway, Mia Couto, José Saramago, Machado de Assis, Jorge Amado, Luiz Ruffato, Marcelo Rubens Paiva, Marçal Aquino, Fernando Moraes, Patrícia Campos Mello, Aldous Huxley, Jack London, Ian McEwan e J.M. Coetzee”, diz o texto enviado pela assessoria de comunicação da Funap.
O governo estadual afirma que “faz um rodízio de títulos e é possível que os livros sugeridos entrem futuramente para remição pela leitura”.
“Os detentos podem ter acesso a outros 650 mil livros disponíveis nas bibliotecas das unidades prisionais. Por isso, não há nenhum tipo de censura ou veto a livros. Será realizada uma reunião amanhã [nesta quarta-feira (12)] com a colaboradora que sugeriu os títulos para debater a inclusão das publicações”, afirma a nota.
A medida se encaixa em contexto mais amplo de censura a obras artísticas no Brasil.
No começo do mês, a Secretaria de Educação de Rondônia distribuiu um memorando e uma lista de 43 livros para serem recolhidos das escolas por conterem o que foi definido como “conteúdos inadequados” a crianças e adolescentes. A pasta voltou atrás após críticas à medida.
Em janeiro, a Prefeitura de São Paulo reuniu parte dos espetáculos atacados ou censurados pelo governo de Jair Bolsonaro ao longo de 2019, como o longa-metragem “Bruna Surfistinha” e o músico Arnaldo Antunes.