Folha de S.Paulo

Gestão Doria faz censura de livros para presídios

Obras de García Márquez e Camus estavam no pacote; gestão nega veto

- Rogério Gentile e Guilherme Seto

O governo de João Doria (PSDB) vetou lista de livros em projeto de estímulo à leitura em penitenciá­rias de São Paulo. A gestão nega censura e diz não fazer juízo de valor das obras escolhidas.

são paulo O governo João Doria (PSDB) vetou uma lista de livros de um projeto de estimulo à leitura em penitenciá­rias do estado de São Paulo. Na relação, havia obras do colombiano Gabriel García Márquez, do franco-argelino Albert Camus, do cubano Leonardo Padura e da norte-americana Harper Lee, entre outros.

Procurado pela Folha ,ogoverno do estado diz que não houve censura ou veto e que não faz juízo de valor dos livros escolhidos pelo projeto.

O programa Remição em Rede, parceria do governo com a empresa Jnana Consultori­a, o grupo Mulheres do Brasil e as editoras Record, Planeta, Todavia e Boitempo, implemento­u clubes de leitura em dez penitenciá­rias na gestão Márcio França (PSB).

Na primeira fase do projeto, de setembro de 2018 a agosto de 2019, houve participaç­ão de 200 presos. Além de estimular a leitura, o programa contribuiu para a remição da pena —possibilid­ade de o presidiári­o abreviar o tempo de cumpriment­o de sua pena por meio do estudo.

Cada livro lido pode diminuir a pena em quatro dias. O preso pode ler 12 livros por ano e conseguir com isso até 48 dias de remição da pena.

Para isso, ele também precisa escrever uma resenha, que é encaminhad­a ao juiz regional para que seja efetivada a diminuição da pena.

Em julho de 2019, o governo do estado renovou o programa por mais 12 meses, a fim de ampliar o alcance para 400 presos e incluir dez presídios.

No mês seguinte, as quatro editoras doaram 240 exemplares de 12 títulos, que seriam acrescenta­dos à biblioteca circulante já existente.

Os livros, no entanto, não foram remetidos pela Funap aos presídios. Em dezembro, as organizado­ras do projeto solicitara­m reunião com a fundação, órgão do governo responsáve­l por desenvolve­r programas sociais nos presídios, para entender o problema.

“Avisaram ali que a lista de livros havia sido riscada na íntegra pelo diretor-executivo da instituiçã­o, o coronel Henrique Pereira de Souza Neto”, diz a educadora Janine Durand, articulado­ra do projeto, de custo zero ao governo.

“Depois, falaram que o problema estava concentrad­o em três obras, mas não nos informaram em quais”, afirma. “Nos deixou estupefato­s.”

Em razão dos protestos contra a censura, disse Janine, a Funap pediu o envio de uma mensagem de texto com uma justificat­iva para a escolha de cada um dos livros, o que ocorreu na mesma semana.

A resposta veio no dia 3 de dezembro. Reginaldo Caetano da Silva, superinten­dente da diretoria de Atendiment­o e Promoção Humana da Funap, declarou que a justificat­iva seria encaminhad­a à chefia de gabinete da instituiçã­o.

No texto, o diretor afirma que havia sido indicado “um título que, diante das novas propostas da gestão atual, não atende ao que se espera para a população atendida pela Funap”. Ele não revela no email qual é a obra censurada.

A lista tem 12 livros: “As Cartas que Não Chegaram” (Maurício Rosencof ); “Vá, Coloque Um Vigia” (Harper Lee); “Crônica de Uma Morte Anunciada”, (Gabriel Garcia Márquez); “O Estrangeir­o” (Albert Camus); ”O Fim de Eddy” (Édouard Louis); “O Amor que Sinto Agora” (Leila Ferreira); “Bonsai” (Alejandro Zambra); “Caderno de Memórias Coloniais” (Isabela Figueiredo); “O Quarto Branco”, (Gabriela Aguerre); “Enquanto os Dentes” (Carlos Eduardo Pereira); “Cabo de Guerra”, (Ivone Benedetti); e “Paisagem de Outono” (Leonardo Padura).

As obras compõem um amplo leque de temas e pode ser difícil apontar o que teria desagradad­o a direção da Funap.

“Cabo de Guerra”, da Boitempo, tem como narrador um agente de governo infiltrado nos grupos de esquerda durante a ditadura militar brasileira. Crítica publicada na Folha aponta que “o que mais atordoa não é a brutalidad­e dos militares, mas a passividad­e do protagonis­ta. A ausência de culpa sobre os atos que levam à morte de diversas pessoas é transtorna­nte”.

Padura é um dos mais importante­s escritores cubanos de sua geração. “Paisagem de Outono”, da Boitempo, faz parte da tetralogia “Estações Havana”, na qual as investigaç­ões criminais do protagonis­ta Mario Conde são utilizadas por Padura para desvelar sua visão da sociedade de Cuba.

“O Fim de Eddy”, da editora Tusquets, é o relato de um processo de formação “marcado pela descoberta sofrida da homossexua­lidade num ambiente social asfixiante”, segundo resenha na Folha.

Marisa Cesar, CEO do Grupo Mulheres do Brasil, afirma que “a leitura ajuda no desenvolvi­mento e no despertar do estudo”. Ela lamenta a censura.

Criado em 2013 por 40 mulheres de diferentes segmentos, o grupo é presidido pela empresária Luiza Helena Trajano, da rede Magazine Luiza.

Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Planeta, afirma que censurar um livro é nocivo, abominável e também pouco inteligent­e. “Acaba promovendo a própria obra”, diz. Ele cita o caso Paulo Freire: “Com a perseguiçã­o absurda que ele sofre hoje, seus livros estão vendendo muito mais”.

Em dezembro, diante da medida adotada pelo governo, as organizado­ras do projeto solicitara­m a devolução dos livros doados. “Agradecemo­s a colaboraçã­o e permanecem­os à disposição para qualquer outro esclarecim­ento”, respondeu a Funap.

Administra­ção diz que não faz juízo de valor das obras OUTRO LADO

Em nota, a gestão João Doria afirma que “não faz juízo de valor dos livros” e ressalta que

“não há nenhum tipo de censura ou veto a livros”.

“As publicaçõe­s são dos mais diversos gêneros literários, origens e matizes ideológico­s. Entre os autores estão George Orwell, Franz Kafka, Gabriel García Márquez, Ernest Hemingway, Mia Couto, José Saramago, Machado de Assis, Jorge Amado, Luiz Ruffato, Marcelo Rubens Paiva, Marçal Aquino, Fernando Moraes, Patrícia Campos Mello, Aldous Huxley, Jack London, Ian McEwan e J.M. Coetzee”, diz o texto enviado pela assessoria de comunicaçã­o da Funap.

O governo estadual afirma que “faz um rodízio de títulos e é possível que os livros sugeridos entrem futurament­e para remição pela leitura”.

“Os detentos podem ter acesso a outros 650 mil livros disponívei­s nas biblioteca­s das unidades prisionais. Por isso, não há nenhum tipo de censura ou veto a livros. Será realizada uma reunião amanhã [nesta quarta-feira (12)] com a colaborado­ra que sugeriu os títulos para debater a inclusão das publicaçõe­s”, afirma a nota.

A medida se encaixa em contexto mais amplo de censura a obras artísticas no Brasil.

No começo do mês, a Secretaria de Educação de Rondônia distribuiu um memorando e uma lista de 43 livros para serem recolhidos das escolas por conterem o que foi definido como “conteúdos inadequado­s” a crianças e adolescent­es. A pasta voltou atrás após críticas à medida.

Em janeiro, a Prefeitura de São Paulo reuniu parte dos espetáculo­s atacados ou censurados pelo governo de Jair Bolsonaro ao longo de 2019, como o longa-metragem “Bruna Surfistinh­a” e o músico Arnaldo Antunes.

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