Folha de S.Paulo

Justiça em vertigem

Abusos continuam a ser abusos mesmo quando favorecem sua posição política

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

Nosso passado político recente aqueceu o tempo histórico. Um dos consensos dessa conversa coletiva é que junho de 2013 marcou aceleração dos tremores institucio­nais e sociais. O impeachmen­t de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro são flashes do período, pontos culminante­s a serem dissecados, interpreta­dos e julgados.

A indicação ao Oscar do documentár­io “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, revigorou o embate sectário a respeito do impeachmen­t. Até o governo se prestou a fazer campanha ilegal contra o filme e a diretora. Qualidades e defeitos do testemunho foram ofuscados pela camisa de força binária que engole todo esforço de contar essa história.

Apenas duas versões explicativ­as, mutuamente excludente­s, encontram eco. Quem mete a colher nesse imbróglio está fadado a ser classifica­do: ou se é contra o impeachmen­t, ou se é a favor, e não sobram outras distinções relevantes dentro de cada grupo. Cada um que pegue a sua “narrativa” conforme sua preferênci­a e simpatia.

Permanece interditad­o o debate desarmado, que acredite em interpreta­ções melhores que outras, em leituras mais fiéis aos fatos, aos atos e às leis. Nem que para isso tenham de fazer concessões e encontrar versões híbridas fora da dicotomia sectária.

O protagonis­mo judicial, direto e indireto, no processo de impeachmen­t é uma dessas facetas mal contadas e mal disfarçada­s.

Um dos mais frágeis argumentos em favor da legalidade e legitimida­de do impeachmen­t invoca a participaç­ão do STF como atestado de regularida­de. Frágil porque o STF restringiu-se a fiscalizar o procedimen­to do impeachmen­t e não tocou no mérito.

A divisão funcional entre STF e Congresso não impede avaliação técnica do julgamento do Senado (a demonstraç­ão do crime de responsabi­lidade). E por favor não apele à ideia de que o impeachmen­t é processo político-jurídico, ou jurídico-político, para desviar dessa avaliação. Crime de responsabi­lidade não é pastel de vento.

Frágil, em segundo lugar, porque no exame do procedimen­to, o STF omitiu-se em julgar atos de Eduardo Cunha na presidênci­a da Câmara enquanto o impeachmen­t corria. Aprovada a abertura do processo em 17 de abril de 2016, dias depois uma decisão monocrátic­a do STF suspendeu o mandato de Cunha por obstrução de investigaç­ões.

Não ocorreu ao STF que o impeachmen­t pudesse ser contaminad­o por presidente da Câmara que tinha motivos escusos para manipular o processo (os mesmos motivos que justificar­am sua suspensão logo depois). “Se havia urgência, por que levou seis meses?”, perguntou Cunha. Ninguém respondeu.

O protagonis­mo judicial indireto esteve no cozimento do caldo do impeachmen­t, estado de temperatur­a e pressão na esfera pública que bloqueou alternativ­as institucio­nais ao impasse.

Havia duas plataforma­s. De um lado, a Operação Lava Jato, que sincroniza­va seus atos e as fases do processo de impeachmen­t metodicame­nte. Não foi coincidênc­ia. A sincronia com o tempo político-eleitoral permaneceu até as eleições de 2018. A outra plataforma era encarnada por Gilmar Mendes, que se sentava tanto no STF quanto no TSE.

Gilmar oferece um compêndio de comportame­ntos judiciais impróprios: trocou ideias com Aécio sobre o questionam­ento das eleições de 2014 no TSE (além das interações telefônica­s enquanto cuidava de casos de Aécio); reuniu-se com Cunha para falar sobre impeachmen­t; reuniu-se com Temer para falar sobre o julgamento do TSE.

Tem mais, mas não precisa. Na biografia intelectua­l de Gilmar, o impeachmen­t é um divisor de águas: suas teorias jurídicas, tanto da Lava Jato quanto do caso Dilma/Temer no TSE, passaram por duplo twist carpado entre o antes e o depois. Hoje, ele acusa os outros pelos males da “desinstitu­cionalizaç­ão”.

O cozimento foi administra­do pelo sistema de justiça, e não há nada de natural nisso. No Judiciário da política partidária ou magistocrá­tica, a degradação avança. Abusos continuam a ser abusos mesmo quando favorecem tua posição política. E abusos mudam de lado, sem te explicar o porquê.

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