Projeto que dá aos pais poder de veto na escola avança na Espanha
Ideia da ultradireita contra suposta doutrinação em aulas sobre sexo e religião já foi adotada no sul do país
Se os pais podem vetar o que os filhos assistem na TV apenas digitando uma senha, por que não podem decidir o que eles aprendem na escola?, perguntam políticos de direita na Espanha.
A questão foi se infiltrando aos poucos no debate público. Começou com grupos conservadores e ganhou tração ao ser abraçada pelo Vox, partido de ultradireita que se tornou o terceiro maior do país nas eleições de 2019. A proposta foi uma de suas bandeiras de campanha e agora também é disputada pelo PP, a maior legenda de direita do país.
O partido defende dar aos pais o direito de vetar a presença dos filhos em atividades escolares de temas dos quais a família discorde da abordagem, sem que suas notas possam ser prejudicadas. A ideia foi apelidada de “Pin Parental”, a ferramenta de bloqueio de programas na TV paga.
O primeiro alvo da medida são aulas e conversas nas escolas sobre educação sexual. O Vox acusa os professores de tentar doutrinar os alunos e, assim, ameaçar o modelo de família tradicional.
“Estão circulando mensagens e vídeos falsos por WhatsApp que acusam professores de mostrar pornografia nas aulas. São fake news”, diz Carmen Fernández Morante, decana da Faculdade de Educação da Universidade de Santiago de Compostela.
Se for implantado de modo completo, o “Pin Parental” abre caminho para que um estudante possa se graduar sem ter aulas sobre o formato da Terra, a evolução das espécies, o islamismo, a importância das vacinas, a diversidade sexual e a história do comunismo, por exemplo.
Fortalecido pelas urnas, o Vox passou a negociar seu apoio nos governos locais em troca da adoção dessa ideia. A legenda conseguiu em agosto uma implantação parcial na região de Múrcia, no sul do país, para atividades complementares. Em janeiro, nova vitória: a medida foi mantida em troca de apoio na votação do Orçamento local.
O partido tenta a mesma estratégia em outras cidades. Em Astúrias e na Andaluzia, a ideia foi rejeitada na semana passada. Na capital, a ideia segue em debate e tem apoio do prefeito José Almeida (PP).
O PP adotou a ideia de olho na onda conservadora. “Meus filhos são meus, e não vai vir nenhum burocrata, comunista ou socialista dizer como tenho que educá-los”, afirmou, em janeiro, Pablo Casado, líder da legenda.
Casado passou a dizer que a ideia é do PP, e não do Vox. Em algumas cidades comandadas pela legenda, os pais podem impedir que os filhos participem de atividades sobre touradas, por exemplo.
O governo nacional, sob comando do socialista Pedro Sánchez, rechaça a medida e passou a combatê-la na Justiça, por considerá-la inconstitucional. “Não podemos pensar que os filhos pertencem aos pais”, disse a ministra da Educação, Isabel Celaá.
As leis da Espanha determinam que a formação escolar contemple várias linhas de pensamento, a diversidade sexual, o combate ao preconceito e à violência de gênero. A Constituição, porém, traz artigo que garante aos pais o direito de que os filhos tenham uma formação religiosa de acordo com suas convicções.
Para Morante, o “Pin Parental” deve acabar barrado na Justiça. “A escola tem o desafio de ensinar a pensar criticamente. Qualquer proposta que pretenda ocultar parte da realidade vai contra o direito das crianças à educação”, diz.
Enquanto o debate segue, entidades conservadoras como a Hazte Oir (faça-se ouvir) fazem ações na porta de escolas, como distribuir formulários para que os pais deixem claro aos professores quais temas querem vetar da formação dos filhos. Com os papéis vão panfletos que acusam educadores de doutrinação.
O grupo também divulga um telefone para que os pais façam denúncias sobre escolas que falem de gênero de modo que os desagrade.
Nas escolas de Múrcia, educadores se recusam a pedir autorização dos pais.
O professor Diego Reina levou seus alunos a uma conversa sobre humanismo e Renascimento. “Posso ser alvo de processo, mas não tenho medo. Se tivesse, estaríamos em outro regime que não a democracia”, disse aos alunos, em fala que foi divulgada pela rádio Cadena Ser.
Para Marcos Pagotto-Euzebio, professor da Faculdade de Educação da USP, a vontade dos pais de interferir na escola reflete o medo de perder o controle sobre os filhos.
“Na família, aprende-se sobre afeto. A escola tem a função de apresentar o mundo, de ampliar os horizontes, para que os jovens se tornem pessoas autônomas”, diz. “A escola não existe só para atender pais e alunos. Se cada um fica restrito à sua própria tribo e se fecha para o diferente, a sociedade implode.”