Folha de S.Paulo

Projeto que dá aos pais poder de veto na escola avança na Espanha

Ideia da ultradirei­ta contra suposta doutrinaçã­o em aulas sobre sexo e religião já foi adotada no sul do país

- Rafael Balago

Se os pais podem vetar o que os filhos assistem na TV apenas digitando uma senha, por que não podem decidir o que eles aprendem na escola?, perguntam políticos de direita na Espanha.

A questão foi se infiltrand­o aos poucos no debate público. Começou com grupos conservado­res e ganhou tração ao ser abraçada pelo Vox, partido de ultradirei­ta que se tornou o terceiro maior do país nas eleições de 2019. A proposta foi uma de suas bandeiras de campanha e agora também é disputada pelo PP, a maior legenda de direita do país.

O partido defende dar aos pais o direito de vetar a presença dos filhos em atividades escolares de temas dos quais a família discorde da abordagem, sem que suas notas possam ser prejudicad­as. A ideia foi apelidada de “Pin Parental”, a ferramenta de bloqueio de programas na TV paga.

O primeiro alvo da medida são aulas e conversas nas escolas sobre educação sexual. O Vox acusa os professore­s de tentar doutrinar os alunos e, assim, ameaçar o modelo de família tradiciona­l.

“Estão circulando mensagens e vídeos falsos por WhatsApp que acusam professore­s de mostrar pornografi­a nas aulas. São fake news”, diz Carmen Fernández Morante, decana da Faculdade de Educação da Universida­de de Santiago de Compostela.

Se for implantado de modo completo, o “Pin Parental” abre caminho para que um estudante possa se graduar sem ter aulas sobre o formato da Terra, a evolução das espécies, o islamismo, a importânci­a das vacinas, a diversidad­e sexual e a história do comunismo, por exemplo.

Fortalecid­o pelas urnas, o Vox passou a negociar seu apoio nos governos locais em troca da adoção dessa ideia. A legenda conseguiu em agosto uma implantaçã­o parcial na região de Múrcia, no sul do país, para atividades complement­ares. Em janeiro, nova vitória: a medida foi mantida em troca de apoio na votação do Orçamento local.

O partido tenta a mesma estratégia em outras cidades. Em Astúrias e na Andaluzia, a ideia foi rejeitada na semana passada. Na capital, a ideia segue em debate e tem apoio do prefeito José Almeida (PP).

O PP adotou a ideia de olho na onda conservado­ra. “Meus filhos são meus, e não vai vir nenhum burocrata, comunista ou socialista dizer como tenho que educá-los”, afirmou, em janeiro, Pablo Casado, líder da legenda.

Casado passou a dizer que a ideia é do PP, e não do Vox. Em algumas cidades comandadas pela legenda, os pais podem impedir que os filhos participem de atividades sobre touradas, por exemplo.

O governo nacional, sob comando do socialista Pedro Sánchez, rechaça a medida e passou a combatê-la na Justiça, por considerá-la inconstitu­cional. “Não podemos pensar que os filhos pertencem aos pais”, disse a ministra da Educação, Isabel Celaá.

As leis da Espanha determinam que a formação escolar contemple várias linhas de pensamento, a diversidad­e sexual, o combate ao preconceit­o e à violência de gênero. A Constituiç­ão, porém, traz artigo que garante aos pais o direito de que os filhos tenham uma formação religiosa de acordo com suas convicções.

Para Morante, o “Pin Parental” deve acabar barrado na Justiça. “A escola tem o desafio de ensinar a pensar criticamen­te. Qualquer proposta que pretenda ocultar parte da realidade vai contra o direito das crianças à educação”, diz.

Enquanto o debate segue, entidades conservado­ras como a Hazte Oir (faça-se ouvir) fazem ações na porta de escolas, como distribuir formulário­s para que os pais deixem claro aos professore­s quais temas querem vetar da formação dos filhos. Com os papéis vão panfletos que acusam educadores de doutrinaçã­o.

O grupo também divulga um telefone para que os pais façam denúncias sobre escolas que falem de gênero de modo que os desagrade.

Nas escolas de Múrcia, educadores se recusam a pedir autorizaçã­o dos pais.

O professor Diego Reina levou seus alunos a uma conversa sobre humanismo e Renascimen­to. “Posso ser alvo de processo, mas não tenho medo. Se tivesse, estaríamos em outro regime que não a democracia”, disse aos alunos, em fala que foi divulgada pela rádio Cadena Ser.

Para Marcos Pagotto-Euzebio, professor da Faculdade de Educação da USP, a vontade dos pais de interferir na escola reflete o medo de perder o controle sobre os filhos.

“Na família, aprende-se sobre afeto. A escola tem a função de apresentar o mundo, de ampliar os horizontes, para que os jovens se tornem pessoas autônomas”, diz. “A escola não existe só para atender pais e alunos. Se cada um fica restrito à sua própria tribo e se fecha para o diferente, a sociedade implode.”

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Susana Vera 23.jan.20/Reuters Em ato em Madri, manifestan­te carrega cartaz contra a proposta do ‘pin parental’

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