Folha de S.Paulo

A impunidade nos crimes contra a vida

As instituiçõ­es precisam priorizar as respostas sobre crimes violentos

- Ilona Szabó de Carvalho Empreended­ora cívica, mestre em estudos internacio­nais pela Universida­de de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”

Toda morte importa. De acordo com o Monitor da Violência, o país teve 30.864 mortes violentas de janeiro a setembro de 2019, uma queda de 22% em relação ao mesmo período do ano anterior. Apesar da diminuição, o número ainda é muito alto e se traduz em uma morte a cada 13 minutos. A redução dos homicídios, no entanto, não se estendeu às mortes violentas cometidas por policiais. Ainda não há dado nacional para 2019, mas estatístic­as de estados como Rio de Janeiro e São Paulo mostram que se acentuou a tendência de alta no número de mortes decorrente­s de intervençõ­es policiais já detectada em 2018, quando 6.220 pessoas morreram após intervençã­o policial, uma média de 17 pessoas mortas por dia.

No caso dos homicídios, 15 unidades da federação ainda não são capazes de indicar quantos assassinat­os são punidos, como mostra pesquisa do Instituto Sou da Paz. Em 2016, somente 10% dos homicídios dolosos no Pará e 24% no Piauí foram convertido­s em denúncias à Justiça. A falta de transparên­cia e eficiência sobre as investigaç­ões das mortes decorrente­s de intervençõ­es policiais é ainda mais gritante. Na maioria dos casos, o Ministério Público se isenta de buscar mais informaçõe­s para esclarecer as circunstân­cias e a legitimida­de do uso letal da força por agentes do Estado.

A ausência de resposta para assassinat­os brutais e a falta de transparên­cia sobre as mortes violentas cometidas por policiais diminuem a credibilid­ade do poder público e passam a sensação de que tirar uma vida sai barato. Adicionalm­ente, a impunidade é usada como justificat­iva por pessoas que defendem fazer justiça com as próprias mãos e buscam soluções extralegai­s. Essa combinação representa a quebra da relação de confiança entre Estado e indivíduos, base do que chamamos de contrato social.

Casos emblemátic­os ajudam a chamar a atenção para a importânci­a de se priorizar o esclarecim­ento dos crimes violentos. Quase dois anos depois do assassinat­o da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, sabe-se que houve tentativas de atrapalhar a investigaç­ão e ainda não se sabe quem é o mandante. Os suspeitos presos pela execução das mortes são milicianos e ex-policiais. As munições usadas foram desviadas da Polícia Federal. É inaceitáve­l a Câmara ter aprovado o projeto de lei que extingue a marcação de munições compradas pelas polícias e as Forças Armadas. O Senado precisa rejeitar a proposta e cobrar a marcação em lotes menores, fundamenta­l para o trabalho de investigaç­ão.

Um episódio mais recente, a morte do ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, em operação conjunta entre policiais da Bahia e do Rio de Janeiro, levantou perguntas que precisam ser respondida­s. O miliciano era testemunha de diversos crimes de corrupção que envolvem autoridade­s do alto escalão e de assassinat­os cometidos pelo seu grupo criminoso, o Escritório do Crime. Há poucos dias, Adriano disse ao seu advogado que seria vítima de uma possível queima de arquivo. É essencial cobrar transparên­cia nas investigaç­ões de sua morte para que não haja dúvidas que possam fragilizar a legitimida­de da ação.

Há um debate em curso sobre a capacidade das instituiçõ­es democrátic­as de resistirem às tendências autoritári­as do atual governo do Brasil. Para provar sua robustez e independên­cia, as instituiçõ­es precisam priorizar as respostas sobre crimes violentos. A sociedade brasileira já sinalizou que não tolera mais certos tipos de crime, em especial a corrupção. Para proteger a democracia, a indignação e a mobilizaçã­o popular que colocaram esse crime na pauta prioritári­a do país podem e devem inspirar a população a ir além, e exigir soluções para os crimes contra a vida. Afinal, esses atingem nosso bem mais valioso e o único que não pode ser restituído.

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