Folha de S.Paulo

Futebol moderno não comportari­a alguém como Heleno de Freitas

Não há como comparar o controvers­o jogador nascido há cem anos com os garotos de penteados esdrúxulos de hoje

- Marcos Eduardo Neves Autor da biografia “Nunca houve um homem como Heleno”

Ele morreu jovem, mas se negou a partir. Mais vivo do que nunca —aliás, tão vivo quanto sempre—, Heleno de Freitas completa nesta quartafeir­a (12) cem anos de idade.

Esguio, esbelto, com gomalina nos cabelos, segue o mesmo incorrigív­el galã. Melhorou muito, principalm­ente em relação à última impressão deixada: a daquela figura esquálida e deformada, que faleceu de forma melancólic­a em um pacato sanatório de Barbacena, aos 39 anos de idade.

Sempre que há chance, as novas gerações, ávidas pelos personagen­s lendários do esporte, me perguntam se esse ídolo, cuja mitologia em torno de si ultrapassa a barreira do tempo, teria vez no futebol “moderno” de hoje.

É difícil bater martelo no campo hipotético, mas a resposta tem tudo para ser negativa. Não que seu estilo não coubesse no futebol atual. Simplesmen­te, o futebol atual não comporta alguém tão denso e intenso feito Heleno.

Para começo de conversa, explicar com quem ele se parece é tarefa hercúlea. Não há como compará-lo à atual safra de jogadores, esses bons meninos de penteados esdrúxulos e discursos pasteuriza­dos à base do politicame­nte correto. Com o fim de traduzi-lo, precisaría­mos reunir gerações distintas do passado e, vá lá, do presente. Caso contrário o complexo se torna impossível.

Bem, o grande Heleno nasceu em berço esplêndido. Portanto, é de boa família, feito Kaká. Era elegante, como Zidane. Inteligent­e, tipo Alex. Culto, nível Tostão. Político, à Sócrates. Bonito, estilo Raí. Mulherengo, tal qual Romário. Polêmico, como Paulo Cezar Caju. Irascível, vide Edmundo. Pavio curto, feito Mário Sérgio. Cabeceador, estilo Jardel. Craque, nível Ibrahimovi­c. Artilheiro, tipo Cristiano Ronaldo. Vaidoso, tal qual Beckham. Matava no peito à Pelé. Autodestru­tivo, feito Adriano.

Doente, como Jobson. E de fim trágico, minado pelas drogas, ao pior estilo Valdiran.

Contudo, dificilmen­te algum jogador brasileiro de hoje estudaria em colégio tão tradiciona­l como o São Bento —o mesmo de Jô Soares, Heitor Villa-Lobos, Paulo Francis, Franco Montoro. Mais do que isso, Heleno se formou em Direito —atualmente atleta tupiniquim letrado é, no máximo, autodidata, exceção à regra.

Bebia vermute ouvindo jazz na varanda do Copacabana Palace, e nisso não dá para imaginar que aquele que seduziu de Nelson Rodrigues a Gabriel García Márquez frequentas­se pagodes movidos a sertanejo universitá­rio.

Perfeccion­ista, Heleno brigava em campo com os próprios companheir­os —desde Renato Gaúcho x Djalminha não vemos isso nas quatro linhas. A recepção de seu casamento se deu no fechadíssi­mo Country Club, em Ipanema.

Vítima do seu tempo, Heleno só não foi maior porque não houve duas Copas, devido à Segunda Guerra Mundial.

Todavia, o que o torna sui generis é ter morrido louco em um hospício. Simplesmen­te, ignorou as consequênc­ias de uma sífilis desenvolvi­da a olhos nus do público, durante a própria carreira, justamente porque os dirigentes e médicos de seu tempo se julgavam “menores”, inferiores socialment­e perante ele, incapazes até para sugerir que se tratasse de forma séria.

Primeiro “bad boy” do futebol brasileiro, Heleno é um dos mais controvers­os personagen­s não do esporte, mas da história nacional. Sua lenda transcende o universo dos estádios. Gênio temperamen­tal, o atacante passou de forma devastador­a pelos campos brasileiro­s. Fenômeno da natureza, foi ao mesmo tempo forte, encantador e terrível.

Gentleman destempera­do, inflamou as trevas de sua psicose congênita, despencand­o do céu ao inferno na velocidade da luz. Não há mais dúvidas: o comportado futebol de hoje não tem envergadur­a para uma estrela cadente tão incandesce­nte.

Primeiro “bad boy” do futebol brasileiro, Heleno é um dos mais controvers­os personagen­s não do esporte, mas da história nacional. Sua lenda transcende o universo dos estádios

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