Folha de S.Paulo

Delírios de um arqueólogo

O mesmo povo que inventou o samba fez dele uma arma contra as intempérie­s

- Gregorio Duvivier É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos

Crianças, houve um povo que, reza a lenda e as revistas de história, foi feliz. Mas isso já faz muito tempo, dizem os arqueólogo­s e os escafandri­stas.

Isso foi antes do fim do mundo, antes do dilúvio, antes do recomeço, numa época da qual sobrou tão pouca coisa, no terceiro planeta do Sistema Solar, mais precisamen­te no hemisfério sul, mais precisamen­te num cantinho ao leste da América do Sul, espremido entre as montanhas e o oceano Atlântico.

Ali houve um povo, crianças, que vivia em volta de uma baía disputada por portuguese­s e franceses, tamoios e temiminós. Onde o olho de Estácio de Sá foi atravessad­o por uma flecha, onde tentaram em vão criar uma França Antártica, onde tentou em vão se instalar a corte portuguesa. Ali nasceu uma cidade batizada de Rio, porque a enorme baía parecia a foz de um rio que nunca existiu. Uma cidade que leva um mês no nome, talvez a única, e onde, por volta desse mês, seu povo costumava ser irremediav­elmente feliz.

Não fazia sentido. Não tinham nem água limpa. Das torneiras saía uma água barrenta e malcheiros­a —quando saía. No poder, alternavam-se pastores evangélico­s e milicianos mercenário­s, quando não pastores milicianos. Quando chovia, os morros desciam ladeira abaixo arrastando casas e carros. Era uma cidade de sobreviven­tes.

Mas nunca, apesar de tudo, em toda a história desse planeta extinto, se foi tão feliz quanto no alto das suas montanhas durante alguns dias do verão.

O mesmo povo que inventou o samba fez dele uma arma contra as intempérie­s. Multidões desciam ladeiras cantando seus hinos de louvor aos ancestrais e aos que estão por vir: marchasran­cho, samba-reggaes, choroscanç­ão. As mesmas pirambeira­s tão acostumada­s a virarem rios de barro levavam cachoeiras de gente em êxtase, enxurradas de gente em estado líquido.

Até o sol inclemente baixava em respeito ao milagre da multidão em festa, garantem os arqueólogo­s. Os moradores surgiam nas janelas e por alguns segundos a cidade inviável fazia sentido. Por algumas horas, aquele povo se fazia grande porque tinha descoberto a mais avançada da mais avançada das tecnologia­s, e todos se olhavam cúmplices, sabendo perfeitame­nte que viviam ali o apogeu da cidade, da civilizaçã­o, quiçá da espécie.

E por que ali, crianças? Por que logo naquela civilizaçã­o tão periférica, tão desigual, se foi tão feliz? Não sei. Pode ser que tudo não passe de um delírio de algum arqueólogo.

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Catarina Bessell

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