Folha de S.Paulo

Intelectua­is reagem com vício de classe à estética bolsonaris­ta

- Pedro França

Quando a política se organiza a partir da produção de imagens, toda análise política será também um debate estético. Por isso, sugiro pensar a tal estética bolsonaris­ta a partir da relação da arte brasileira com a tal estética popular.

A coisa começou já no púlpito da primeira entrevista presidenci­al: um banco, sobre uma mesinha, sustentava os microfones apoiados em uma prancha de surfe. Rejeito tudo neste governo, mas gostei da escultura. Eu e outros artistas poderíamos tê-la feito.

A estética bolsonaris­ta ecoa o grande projeto das vanguardas modernas: dissolver as hierarquia­s entre coisas comuns e obras de arte e liberar os objetos da tirania do uso.

É o caso da Bauhaus, que sonhou com a arte diluída no dia a dia, abraçando a vulgaridad­e das funções cotidianas e da produção industrial. É também o de Duchamp, que desfez a fronteira entre arte e coisas comuns, instituind­o para sempre uma porta giratória entre esses dois universos.

A modernidad­e funda a noção de que todos os objetos são coisas e arte ao mesmo tempo —uma ambiguidad­e indissolúv­el. A partir daí, foi o diabo (literalmen­te, se dirá).

Adoramos a publicidad­e com Warhol; o ruído das cidades com o rock e o eletrônico; as vidas tidas como “desviantes” com o teatro ritual e a performanc­e; os materiais brutos com a arquitetur­a moderna. Tudo isso foi o tosco feito lindo a partir do gesto moderno de aderir às contradiçõ­es.

No Brasil de hoje, trocando “coisas” por “pessoas comuns” e “obras de arte” por “políticos”, fica assim: até Bolsonaro, havia pessoas comuns e políticos. Ele desfez essa divisão à maneira das vanguardas artísticas. Bolsonaro age como “pessoa comum” e é, ao mesmo tempo, político.

É a porta giratória. Ser uma “pessoa comum” o define como político, enquanto o fato de ele ocupar o maior cargo da República parece dar poder à “pessoa comum”. O presidente é o urinol duchampian­o.

A intelectua­lidade reage com vício de classe. Diz que Bolsonaro afronta a dignidade do cargo, que seu café da manhã é nojento, que camisa falsificad­a não pode —e sei lá o que dizer dos dedos saindo pra fora do chinelo Rider.

Uma amiga de Michelle passeia com pau de selfie no Alvorada. Suas referência­s são “tudo top”. A mesa desenhada por Anna Maria Niemeyer parecia a “do Shrek”. Repúdio geral...

Reagimos como nobres, censurando costumes toscos em nome da etiqueta. Triste é a esquerda que escolhe a aristocrac­ia e foge do embate.

Estão aí os banners de diagramaçã­o pré-pronta, as caixinhas de MDF, a sapatilha com laço, os cabelos com lateral ornamentad­a, a tatuagem de unha, a barba do Gabigol, o Instagram do Adriano Imperador e a cultura do “grau”. Não há estética bolsonaris­ta. Há o país e sua complexida­de.

A arte brasileira se fez moderna incorporan­do aos princípios das vanguardas europeias elementos da cultura popular —samba, cangaço, favela— e alçando ao panteão das artes alguns dos lá de baixo.

Foi assim na bossa nova, no neoconcret­ismo, no tropicalis­mo. Mas, se o modernismo brasileiro soube puxar para cima, ele não soube se rebaixar. Torcemos o nariz para exposições populares e mostras em que o público vai fazer selfie e gostamos de arte política desde que combine com a elegância geométrica-abstrata.

Esse é também o limite da incorporaç­ão bolsonaris­ta da estética popular. O tiozão do churrasco vai à Presidênci­a, mas, destruindo direitos e enriquecen­do rentistas, trabalha contra o real rebaixamen­to da política: a entrega do destino da sociedade a ela mesma.

O tornado antipolíti­co de 2013 podia soprar para dois extremos —para o fim da hierarquiz­ação radical ou para uma forma compensató­ria, truculenta e regressiva da revolta, com a elevação de um avatar do senso comum à Presidênci­a. Deu nisto. Todo fascismo é uma contrarrev­olução preventiva.

Uma arte à altura do presente não deve rejeitar sua vulgaridad­e. Ao contrário, deve ser ainda mais vulgar ( ou seja: comum), levando às últimas consequênc­ias o projeto de diluição das hierarquia­s entre as formas estéticas, entre coisas e pessoas e entre os agentes produtores de arte.

Isso torna nosso olhar e nosso meio radicalmen­te porosos à gigantesca diversidad­e da produção estética no mundo contemporâ­neo e sem medo de lambuzar-se nas contradiçõ­es desse debate.

À arte: vai, ordinária! Não trabalhamo­s com limites.

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