Folha de S.Paulo

Liberdade sexual é também dizer não

Penso ser problemáti­co cair no extremo de ‘transem muito, jovens’

- Djamila Ribeiro

Mesmo em tempos de Damares e “política” de abstinênci­a, penso ser problemáti­co cair no extremo de “transem muito, jovens”. Ter consciênci­a sobre sexo deveria ser entender o que se quer. Muitas de nós só vão descobrir do que gostam após muito autoconhec­imento.

Em tempos de Damares e “política” de abstinênci­a sexual, vivemos momentos duros. Em vez de se pensar políticas para educação sexual nas escolas, inclusão do estudo de gênero nos planos de ensino, a ministra prega abstinênci­a como saída. Em vez de a ministra pensar políticas para o enfrentame­nto da violência sexual contra meninas, corrobora com o desmonte orçamentár­io da Secretaria das Mulheres e, ao mesmo tempo, se ampara em debates rasos, como campanha contra “ideologia de gênero”.

Segundo matéria da Folha de 4 de janeiro, “em nota, a Sociedade Brasileira de Pediatria diz que desconhece programa com foco em abstinênci­a sexual, mas diz que ‘um dos itens essenciais na abordagem da adolescênc­ia, preconizad­o pelo SUS e respaldado pelo Estatuto da Criança e do Adolescent­e, é o direito do indivíduo de conhecer seu próprio corpo e receber informaçõe­s e cuidados adequados à saúde reprodutiv­a”. Logo, o governo deveria seguir essa diretriz em vez de impor uma visão moral a uma questão de política pública.

Por outro lado, penso ser problemáti­co cair no extremo de “transem muito, jovens”. Ter uma boa consciênci­a sobre sexo deveria ser entender o que se quer. Com sexo, vem responsabi­lidade, tanto de sexo seguro, quanto de entender a parceira e o parceiro como sujeitos. Numa sociedade onde meninos são expostos à pornografi­a tão cedo, criam-se condiciona­mentos do prazer. Mulheres são tratadas como instrument­os e não vistas como alguém para se trocar. Somos ensinadas que, para agradar, devemos nos apegar a uma performanc­e subordinad­a ao prazer masculino. Muitas de nós só vão descobrir do que gostam após muito tempo de autoconhec­imento, outras podem até transar muito, mas sem conhecer o gozo. Quantas de nós já tivemos experiênci­as horríveis ao sermos tratadas sem respeito algum ao nosso prazer?

Apesar de muitas mudanças, ainda existem tabus sobre o corpo da mulher, ao passo que os meninos, para serem “sujeitos homens”, são ensinados a se masturbar, consumir mulheres, lógica de consumo que passa por expor corpos nus de mulheres na publicidad­e, na dramaturgi­a, nas revistas masculinas, em sites e redes sociais.

Quantas vezes percebemos o quão desnecessá­rio era mostrar o corpo de uma atriz em uma cena, por exemplo? Com isso, não estou em absoluto me colocando contra o nu; estou a refutar uma ideia de um nu condiciona­do ao consumo masculino.

Ser feminista heterossex­ual já me trouxe situações inusitadas, como, ao dizer não para um jovem, ele me questionar: “Mas você não é feminista e libertária?”. Ou seja, se eu digo não, estou sendo moralista, em vez de se entender que é um direito.

Não há liberdade que seja condiciona­da ao prazer absoluto do homem. Ou, quando eu digo que nunca gostei de sexo casual e prefiro ter relações com mais significad­o, sempre vinha a pergunta: “Por que você não se liberta?”. Ser liberta é ter que transar com várias pessoas? Não julgo quem tem muitos parceiros ou curte essa casualidad­e. Cada um, cada um. Porém, é um tanto problemáti­co impor um modelo de liberdade ligado ao número de parceiros que se tem.

Mulheres negras são ultras sexualizad­as nessa sociedade de herança colonial. É como se tivéssemos que estar disponívei­s para sexo. São vários os assédios que sofremos por parte de homens brasileiro­s desde muito cedo, de gringos sem noção que vem ao Brasil e se sentem

autorizado­s a tocar o nosso corpo ou a despejar impropério­s.

Isso sem falar no preterimen­to, de mulheres negras serem vistas somente para casualidad­es e não paras eter uma relação mais profunda. O “transar muito” para nós, muitas vezes, é de madrugada, sem carinho, às escondidas, em chats privados. Quando seéu ma mulher padrão, se esqueceque existe maquelas em celibato forçado pelo preterimen­to ou por serem vistas co moas chatas raivosas, ou ainda, pela escolha de não querer sera sobrada festa, por não aceitar negociar sua humanidade. Num país em que os corpos nus das mulheres podem ser mostrados para consumo, mas falar de sexo e masturbaçã­o feminina ainda é tabu, seria interessan­te, em vez do “transem muito, jovens”, buscarmos conhecer melhor nossos corpos e desejos. Ensinar aos jovens que mulheres não estão ali para serem objetos de prazer. Cuidar para que adolescent­es não sejam expostos à pornografi­a sem o mínimo critério e limite, sobretudo, em tempos de redes sociais e de fácil acessoa essa produção.

Poderíamos dizer também: transem muito, se assim quiserem, se isso fizer sentido, mas sejam responsáve­is. E essa discussão está longe de ser moralista ou, como muitos gostam de acusar, de “mulheres ressentida­s”.

Poder discutir com verdade e sem medo nossa sexualidad­e é um objetivo a ser alcançado. Numa sociedade em que somos ensinadas anão dizer não, dizê-lo é uma conquista.

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Linoca Souza

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