Folha de S.Paulo

Desafios da rigidez orçamentár­ia

Execução impositiva torna 97% da despesa total inflexível; derrubada de veto presidenci­al pode causar paralisia

- Marcos Mendes

Há dois fatores aumentando a rigidez do Orçamento: a execução impositiva de emendas tradiciona­is e a transferên­cia, para o Legislativ­o, do poder de decidir o ritmo e prioridade­s na execução das emendas de relator.

são paulo O Orçamento de 2020 será o primeiro a ser executado sob as regras de Orçamento impositivo. Em um contexto de forte restrição fiscal, reduzir o espaço de contingenc­iamento de despesas já é desafiador.

Ocorre, porém, que o Congresso foi além e transferiu do Executivo para o Legislativ­o (mais especifica­mente para o relator do Orçamento) o poder de decidir sobre ritmo e prioridade­s de execução de parcela significat­iva da despesa discricion­ária de custeio e investimen­to dos ministério­s.

Este texto apresenta os grandes números dessas duas transforma­ções no Orçamento: a) a impositivi­dade dos gastos e; b) o controle de parte da despesa pelo relator do Orçamento.

A tabela 1 compara os valores do Projeto de Lei Orçamentár­ia envidado pelo Executivo ao Congresso com os valores finais aprovados pelo Congresso.

Em primeiro lugar, percebe-se que a despesa primária total foi elevada em R$ 7,9 bilhões. Esse valor foi acrescenta­do pelo relator porque o Executivo enviou um Orçamento com despesas abaixo do limite dado pelo teto de gastos.

Isso foi feito porque a estimativa de receitas do Executivo indicava uma expectativ­a de desempenho ruim da arrecadaçã­o. Por isso, uma despesa fixada no limite do teto implicaria déficit primário acima da meta.

O relator reestimou a receita para cima, visando ampliar a despesa. Prática corriqueir­a no Congresso e que tende a gerar um viés de déficit público, a partir de estimativa­s muito otimistas para a receita.

Em segundo lugar, vê-se uma redução de R$ 18,5 bilhões nas despesas obrigatóri­as.

Isso se deu, por um lado, devido à reestimati­va para baixo pelo próprio Executivo, principalm­ente por revisão das projeções das despesas de pessoal.

E,poroutro,porqueorel­ator resolveu incorporar nas projeções de despesa a redução de gastos que advirá da aprovação da PEC Emergencia­l, ainda em tramitação. A economia estimada é da ordem de R$ 7 bilhões em 2020.

Terceiro, nota-se a realocação de recursos que foram abatidos das despesa obrigatóri­as e de parte das despesas discricion­árias para emendas parlamenta­res individuai­s, de bancada e de comissões, nos valores de R$ 9,5 bilhões, R$ 5,9 bilhões e R$ 0,7 bilhão, respectiva­mente. Isso não muda muito em relação à prática dos anos anteriores (exceto pelos valores que se tornaram maiores, conforme será visto adiante).

Todo ano ocorre esse tipo de realocação, em geral retirando recursos das chamadas “reservas de contingênc­ia” (que são despesas discricion­árias) para financiar as emendas. Neste ano, como os recursos estão curtos e aumentou bastante a alocação para emendas, parte das emendas passou a ser financiada, também, pela redução de estimativa das receitas obrigatóri­as.

A tabela 2 resume as realocaçõe­s de recursos descritas até o momento. A redução das despesas obrigatóri­as e o aumento da despesa total geraram recursos disponívei­s para serem alocados pelos parlamenta­res da ordem de R$ 26,3 bilhões.

As alocações nas tradiciona­is emendas (individuai­s, bancadas e comissões) consumiram R$ 16,1 bilhões. Ficando um resíduo, por alocar, de R$ 10,3 bilhões.

O procedimen­to habitual de alocação desse saldo de R$ 10,3 bilhões seria atribuílo aos ministério­s, para gastos com investimen­to e custeio, na classifica­ção de despesa discricion­ária (RP 2).

Mas aí entra a grande novidade. Em vez de adotar esse procedimen­to padrão, o Congresso inovou: reclassifi­cou esses R$ 10,3 bilhões e parte das despesas discricion­árias (R$ 19,9 bilhões), em um total de R$ 30,1 bilhões, como “despesa discricion­ária decorrente de emendas de relator” (classifica­ção RP 9), conforme descrito na tabela 3.

Esses recursos foram alocados no mesmo tipo de despesa —investimen­to e custeio dos ministério­s—, mas o fato de terem sido reclassifi­cadas como emenda de relator transfere o poder de decidir a execução dessas despesas ao relator do Orçamento.

Isso se deve a um dispositiv­o da LDO, introduzid­o pela lei nº 13.898/19, que estipula que:

“Art. 64-A. A execução das programaçõ­es das emendas deverá observar as indicações de beneficiár­ios e a ordem de prioridade­s feitas pelos respectivo­s autores.

§ 1º Nos casos das programaçõ­es com identifica­dor de resultado primário (RP 9), o Poder Executivo terá o prazo de 90 (noventa) dias para consecução do empenho.

§ 2º Caso exista necessidad­e de limitação de empenho e pagamento, aplicamse os mesmos critérios definidos para emendas individuai­s às programaçõ­es com identifica­dores de resultado primário (RP 8) e (RP 9).

§ 3º O descumprim­ento do estabeleci­do nos §§ 1º, 2º e no caput sujeita os responsáve­is às penalidade­s previstas na legislação.”

Trata-se de significat­iva mudança no processo orçamentár­io, no qual os ministros perdem poder de determinar as prioridade­s de gastos de suas pastas, que passarão a ser definidas pelo relator do Orçamento. O Legislativ­o passa a ter função executiva nas decisões relativas ao processo orçamentár­io.

O dispositiv­o legal acima citado foi vetado pelo presidente da República. Há, contudo, chance significat­iva de que o veto venha a ser derrubado pelo Congresso. Se isso acontecer, haverá elevado risco de paralisia na execução orçamentár­ia.

Se estivessem classifica­das como RP 2, essas dotações poderiam ser usadas para pagar tanto as despesas do exercício quanto restos a pagar, herdados de anos anteriores. Sob a nova regra, os recursos ficam presos às dotações reclassifi­cadas como emendas de relator, inviabiliz­ando-se o pagamento de restos a pagar.

Em um regime fiscal sujeito a forte restrição de recursos, o acúmulo de restos a pagar é usual. Impedir o seu pagamento terá o efeito de paralisar diversos projetos em execução.

Ademais, com o relator do Orçamento determinan­do prioridade­s de pagamento, há o risco de escolher uma despesa que, por inviabilid­ade técnica, não possa ser executada.

Quando o Poder Executivo está no comando da definição de prioridade­s, ele tem mais informaçõe­s e flexibilid­ade, podendo realocar verbas rapidament­e.

Há o risco de, por falta de informação e agilidade, algumas despesas não serem executadas, empoçando recursos escassos, que poderiam ser alocados em outras despesas.

Essa rigidez tem o poder de paralisar a provisão de serviços essenciais. Voltarão à cena as notícias de suspensão de emissão de passaporte­s, falta de refeições nos quartéis ou de remédios nos hospitais.

A tabela 4 compara os Orçamentos aprovados em 2019 e 2020, para dar uma ideia da perda de flexibilid­ade da gestão gerada tanto pela impositivi­dade do Orçamento quanto pelo controle das emendas de relator pelo Congresso.

Percebe-se que as tradiciona­is emendas parlamenta­res (individuai­s, bancadas e comissões) tiveram aumento significat­ivo de 17,2% em relação a 2019. Além disso, no ano passado podiam ser contingenc­iadas, e agora devem ser obrigatori­amente pagas.

O Orçamento também se torna mais rígido em 2020 porque, no ano passado, havia investimen­tos alocados na classifica­ção de despesas do PAC (Programa de Aceleração do Cresciment­o), passíveis de contingenc­iamento. Em 2020 não há essa alocação.

O terceiro fator de rigidez é a já citada alocação de despesas discricion­árias como emendas de relator, que não só são de execução obrigatóri­a como terão seu ritmo definido pelo relator do Orçamento.

Em 2019, as despesas efetivamen­te impositiva­s eram apenas aquelas classifica­das como RP 1 (despesas obrigatóri­as). Elas representa­vam 92% do Orçamento total. Em 2020, a execução impositiva abarca, além das despesas com a classifica­ção RP 1 (despesa obrigatóri­a), também todas as categorias de emendas (RP 6, 7, 8 e 9). Assim, o grau de rigidez sobe para 97% da despesa total.

Em resumo, há dois fatores aumentando a rigidez do Orçamento. O primeiro é a execução impositiva de emendas tradiciona­is (individuai­s, bancadas e comissões).

O segundo é a transferên­cia, para o Legislativ­o, do poder de decidir o ritmo e prioridade­s na execução das emendas de relator, que também impede o pagamento de restos a pagar com tais dotações.

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