Folha de S.Paulo

Atletas só querem jogar

Sexo biológico não pode ser único critério no esporte

- Erika Hilton Codeputada estadual (PSOL-SP) pelo mandato coletivo da Bancada Ativista, é negra, transvesti­gênere (termo mais amplo para transexual) e ativista dos direitos humanos

Nos próximos dias deverá retornar à pauta de votação da Assembleia Legislativ­a de São Paulo o projeto de lei 346/19. E, novamente, gastaremos tempo e recursos para discutir um projeto que só traz impactos negativos a quem ele se destina.

O projeto de lei propõe que o “sexo biológico” seja “o único critério para definição do gênero de competidor­es em partidas esportivas oficiais no Estado”. Sem embasament­o científico, a consequênc­ia mais direta do projeto é: produzir mais exclusão para as pessoas transvesti­gêneres. Uma pausa para a explicação. O termo, criado por mim e Indianare Siqueira, contempla homens e mulheres transexuai­s, travestis e não binários —ou seja, todas as pessoas não cisgêneras. E pessoa cisgênera (ou apenas “cis”) é aquela que se identifica com o gênero atribuído no seu nascimento.

Mas quantas transvesti­gêneres você conhece? Quantas pessoas trans foram suas colegas de trabalho ou de escola? Quantas frequentam os mesmos restaurant­es, bares e lojas que você? E quantos atletas trans você conhece? Não me surpreende­ria se sua resposta for nenhuma para todas as questões. E por quê? Porque a não aceitação dos nossos corpos produz exclusão, marginaliz­ação e invisibili­dade. Mesmo que você não conviva com pessoas transvesti­gêneres, elas existem e têm os mesmos direitos que qualquer cidadão.

No entanto, a ignorância e o preconceit­o fazem com que desde muito cedo conheçamos o pior da humanidade: somos ridiculari­zadas na escola até desistir dos estudos (e não é evasão escolar, mas expulsão escolar), o que leva à dificuldad­e de acesso ao mercado de trabalho, restando apenas a prostituiç­ão compulsóri­a e violenta como forma de sobrevivên­cia para 90% das mulheres transexuai­s e travestis. E sobrevivem­os muito pouco: nossa expectativ­a média de vida é de 35 anos, sendo o Brasil o país que mais mata travestis e transexuai­s. E por que, mesmo sabendo disso, usam uma Casa Legislativ­a para produzir mais exclusão?

Alguns dirão que não se trata disso, mas de corrigir uma “vantagem” física que as mulheres transexuai­s teriam sobre as mulheres “cis”. Dizem que é “justiça esportiva”. Ignoram, no entanto, que o Comitê Olímpico Internacio­nal já se pronunciou sobre o tema: sim, mulheres trans podem competir em equipes femininas, desde que se declararem do gênero feminino e que apresentem nível de testostero­na inferior a 10 nanomol por litro de sangue, após 12 meses de tratamento hormonal, não havendo necessidad­e da cirurgia de redesignaç­ão sexual.

O nível de testostero­na da jogadora de vôlei Tifanny Abreu (possivelme­nte a única atleta trans de que alguns se lembram) é de 0,2 nmol/L, inferior aos índices de mulheres “cis”, que costumam variar entre 0,21 e 2,98 nmol/L. Portanto, não há vantagem competitiv­a.

E tem mais: se apenas o “sexo biológico” for usado para determinar o gênero em competiçõe­s esportivas, significa que os homens trans passariam a competir com mulheres cisgêneras. Explico: homens trans são pessoas que foram identifica­das como meninas no nascimento, mas que se reconhecem como homens. Durante a transição, fazem terapia hormonal com testostero­na, desenvolve­m barba e mais pelos no corpo, têm aumento da força física e podem se submeter à cirurgia de mastectomi­a (remoção dos seios). Eles passariam a competir em equipes femininas. Assim, se a justificat­iva de corrigir uma vantagem competitiv­a for verdadeira, neste caso o projeto de lei provocaria o contrário: uma injustiça esportiva.

Por fim: será que atletas trans são o principal problema do esporte em São Paulo? Parece-me que o autor do projeto não conversou com a comunidade esportiva sobre as condições dos locais para treino, alojamento­s, equipament­os, baixa remuneraçã­o dos profission­ais ou falta de patrocínio para os paratletas. Talvez meia hora de conversa gerasse propositur­as mais coerentes com as reais necessidad­es do esporte, e nos pouparia do desperdíci­o de tempo de debate público para discutir um projeto que não beneficia ninguém.

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