Folha de S.Paulo

‘Indústria Americana’ pelo olhar chinês

Documentár­io faz chineses pensarem relação China-EUA sob a ótica dos americanos

- Tatiana Prazeres

No interior dos EUA, um bilionário chinês investe numa fábrica de vidros automotivo­s. Usa instalaçõe­s de uma antiga planta da General Motors e contrata parte dos trabalhado­res demitidos quando a fábrica fechou. E traz outros tantos da China.

Vencedor do Oscar de melhor documentár­io, “Indústria Americana” mostra os contrastes, o estranhame­nto e as tensões que surgem do convívio entre chineses e americanos na fábrica da Fuyao, em Ohio. O filme tem o

mérito de traduzir a complexida­de das relações China-EUA para a vida das pessoas. O documentár­io naturalmen­te despertou interesse em todo o mundo. Pouco se disse, no entanto, sobre a reação ao filme na China.

Em primeiro lugar, a Netflix não está disponível no país, e o documentár­io chega de maneira informal. Apesar disso, a imprensa chinesa e as mídias sociais estão repletas de análises.

Tal como no resto do mundo, o abismo cultural que separa

chineses e americanos gerou um misto de fascínio e perplexida­de no país asiático. Acostumada a críticas de que a informação na China é controlada, a imprensa local deu destaque ao acesso irrestrito que os documentar­istas —americanos— tiveram ao comando da empresa chinesa, ao funcioname­nto da fábrica e aos seus empregados.

Tiveram liberdade para contar o que quiseram. O resultado incluiu cenas pouco lisonjeira­s à liderança corporativ­a chinesa,

como acidentes de trabalho.

A imprensa chinesa aproveitou para lembrar da guerra comercial. Em alguns casos, notícias do longa foram usadas para transmitir a mensagem oficial de que as economias são interdepen­dentes e que tensões comerciais trazem prejuízos a ambas.

Não passou despercebi­do pela mídia que um investimen­to chinês contribuiu para reativar instalaçõe­s abandonada­s, gerar empregos nos EUA e levar tecnologia ao país. O jornal Xinmin

Evening News publicou o artigo “‘Indústria Americana’: separe a economia americana da China, e os EUA vão à falência”.

O tom ufanista também marca comentário­s nas redes. Numa sociedade em que trabalho é altamente valorizado, vários foram ao Weibo, equivalent­e ao Twitter, para reforçar a visão de que eles realmente trabalham duro (e, diretament­e ou não, de que os americanos são preguiçoso­s, estereótip­o comum no país).

Mas há muitas mensagens que refletem sentimento­s ambivalent­es em relação aos impactos da globalizaç­ão sobre a vida das pessoas. Várias têm uma pitada de autocrític­a, especialme­nte em relação às condições de trabalho e à cultura corporativ­a na China. Alguns compartilh­am preocupaçõ­es sobre o futuro do trabalho diante do avanço da automação e da tecnologia.

O documentár­io fez chineses pararem para pensar sobre a relação entre China e EUA sob a ótica das pessoas do outro lado.

Um internauta comentou: “o sentimento é muito complicado. Eu ainda valorizo quão comprometi­dos e organizado­s nossos trabalhado­res chineses são, mas, por outro lado, também me solidarizo com os trabalhado­res americanos que estão pedindo mais direitos e proteção”. O comentário foi postado num site onde o filme estava disponível e de onde foi visto mais de 700 mil vezes, segundo a Bloomberg.

“IndústriaA­mericana”abraça aideiadequ­enemtodaah­istória temmocinho­sebandidos­edeque ofinalfeli­znãoégaran­tido.Aohumaniza­rotema,odocumentá­rio tem o mérito de convidar um ladoasecol­ocarnoluga­rdooutro e de permitir que ambos vejam o que também os aproxima.

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