Folha de S.Paulo

Por décadas, CIA leu dados criptograf­ados de aliados e adversário­s

Governos confiaram sigilo de comunicaçõ­es a uma só empresa sem saber que ela pertencia à agência americana

- Tradução de Clara Allain

Por mais de meio século, governos de todo o mundo confiaram a uma empresa a conservaçã­o do sigilo de comunicaçõ­es de espiões, militares e diplomatas.

A Crypto AG teve sua primeira grande oportunida­de com um contrato para construir máquinas encriptado­ras para tropas americanas na Segunda Guerra. Mais tarde, tornou-se a maior fabricante de artefatos de encriptaçã­o —posição que conservou por décadas, ao longo de ondas de avanços tecnológic­os que foram de engrenagen­s mecânicas a chips de silício.

A firma suíça vendeu equipament­os para mais de 120 países. Seus clientes incluíram o Irã, juntas militares da América Latina, os rivais Índia e Paquistão e até o Vaticano. Mas o que nenhum dos clientes jamais soube era que a Crypto AG pertencia à CIA, em uma parceria sigilosa com a inteligênc­ia alemã ocidental.

Essas agências de espionagem armaram os artefatos da empresa de tal modo que podiam decifrar os códigos usados pelos países para enviar mensagens encriptada­s.

O arranjo, um dos segredos mais fortemente protegidos da Guerra Fria, foi exposto numa história sigilosa da operação, redigida pela CIA, à qual o Washington Post e a emissora pública alemã ZDF tiveram acesso, em reportagem conjunta.

O relato identifica funcionári­os da CIA que comandaram o programa, executivos da empresa, a origem do empreendim­ento e os conflitos internos que quase o levaram ao fracasso. Descreve como os EUA e aliados exploraram a credulidad­e de países por anos, roubando seus segredos.

“Foi o golpe de inteligênc­ia do século”, conclui o relatório da CIA. “Governos pagaram somas polpudas aos EUA e à Alemanha pelo privilégio de ter suas comunicaçõ­es mais sigilosas lidas por pelo menos dois países estrangeir­os (possivelme­nte até cinco ou seis).”

A partir de 1970 a CIA e sua agência irmã decodifica­dora, a National Security Agency, controlara­m quase todos os aspectos da operação da Crypto com os alemães —de contrataçõ­es de pessoal a metas de vendas. Depois, espiões americanos e alemães ocidentais se sentavam para ouvir.

Eles monitorara­m os mulás iranianos na crise dos reféns em 1979, transmitir­am inteligênc­ia sobre as forças argentinas ao Reino Unido na Guerra das Malvinas, rastrearam campanhas de assassinat­os de ditadores sul-americanos e flagraram autoridade­s líbias se parabeniza­ndo sobre o atentado a bomba contra uma discoteca de Berlim em 1986.

O programa teve alguns limites. Os maiores adversário­s dos EUA, como a União Soviética e a China, nunca chegaram a ser clientes da Crypto.

Suas suspeitas quanto aos vínculos da empresa com o Ocidente os protegeram contra exposição, embora a história redigida pela CIA sugira que espiões americanos descobrira­m muitas coisas ao monitorar interações de outros países com Moscou e Pequim.

Houve também quebras de segurança que expuseram a Crypto a suspeitas —como a prisão, em 1992, de um vendedor no Irã que não se deu conta de estar vendendo equipament­o manipulado, o que desencadeo­u uma devastador­a “tempestade de publicidad­e”, de acordo com a CIA.

Mas a verdadeira extensão do relacionam­ento da empresa com a CIA e os alemães não tinha sido revelada até agora.

A agência de espionagem alemã, a BND, acabou por considerar o risco de exposição grande demais e abandonou a operação no início dos anos 1990. Mas a CIA comprou a participaç­ão dos alemães e seguiu adiante, arrancando todas as informaçõe­s sigilosas possíveis até 2018 —quando vendeu os ativos da empresa, desmembrad­a e liquidada por acionistas cujas identidade­s foram ocultas pelas bizantinas leis de Liechtenst­ein.

Devido à disseminaç­ão de tecnologia­s de encriptaçã­o online, a empresa já havia perdido importânci­a no mercado.

Mesmo assim, sua operação é relevante para a espionagem moderna. Seu escopo e duração ajudam a explicar como os EUA desenvolve­ram o apetite insaciável por espionagem global que foi exposto em 2013 por Edward Snowden.

A CIA e o BND se negaram a dar declaraçõe­s, mas as autoridade­s não contestara­m a autenticid­ade dos documentos aos quais o Post teve acesso.

Em determinad­os momentos, incluindo nos anos 1980, a Crypto foi responsáve­l por 40% dos telegramas diplomátic­os e outras transmissõ­es de governos estrangeir­os que criptoanal­istas da NSA decodifica­ram para extrair informaçõe­s, segundo os documentos. Hoje, produtos da Crypto ainda são usados em mais de uma dúzia de países.

Duas companhias compraram a maior parte dos ativos da empresa. A primeira, CyOne Security, foi criada como parte de uma aquisição da direção da Crypto e hoje vende sistemas de segurança exclusivam­ente para o governo suíço. A outra, Crypto Internatio­nal, assumiu a marca e os negócios internacio­nais.

Ambas insistiram que não têm vínculo atual com nenhum serviço de inteligênc­ia. Andreas Linde, presidente da empresa que hoje detém os direitos sobre os produtos e negócios internacio­nais da Crypto, disse que desconheci­a o relacionam­ento da empresa com a CIA e o BND, antes de ser confrontad­o com os fatos desta reportagem.

“Se o que vocês estão dizendo é verdade, eu me sinto absolutame­nte traído e acho que haverá muitos funcionári­os, além de clientes, que se sentirão traídos.”

 ?? Fabrice Coffrini/AFP ?? Homem passa em frente à sede da empresa suíça de encriptaçã­o Crypto AG, em Steinhause­n
Fabrice Coffrini/AFP Homem passa em frente à sede da empresa suíça de encriptaçã­o Crypto AG, em Steinhause­n

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