Folha de S.Paulo

Ano começa com certo cheiro ruim de 2019

Economia frustrou um tanto, desvarios de Bolsonaro afetam mudanças econômicas

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Este 2020 começa com algum cheiro ruim de 2019, com um pouco de mofo e poeira. Há pelo menos paralelism­os entre o primeiro e o segundo ano da “nova era”.

1) O cresciment­o da economia na virada do ano foi frustrante, pelos dados conhecidos até agora, oficiais. Indústria e comércio cresceram menos em 2019 do que em 2018; serviços, um tico mais. O investimen­to

em máquinas, instalaçõe­s produtivas e residência­s foi menor, pela estimativa do Ipea.

2) O governo cria crises políticas e de imagem gratuitas e grotescas, atirando no próprio pé, tentando mirar na própria cabecinha.

3) Embora o “parlamenta­rismo branco”, a nova preponderâ­ncia do Congresso, tenda a permanecer, mudanças ministeria­is, a militariza­ção do Planalto, incompetên­cias políticas e outras barbaridad­es do governismo vão exigir algum rearranjo da relação com o Parlamento.

4) A demagogia de Jair Bolsonaro levanta outra vez a suspeita, ainda que risco ora remoto,

de que o presidente avacalhe de vez a dita “agenda de reformas”, o programa da elite econômica. Como se sabe, Bolsonaro causou confusão ao tratar de impostos sobre combustíve­is ou de dólar, além de fraquejar com a reforma administra­tiva.

5) O governo parece uma balbúrdia mesmo em assuntos cruciais, de interesse do “bloco de poder”. Bolsonaro, numa contradanç­a com Paulo Guedes, cria confusão sobre a reforma tributária. Em parte, o governo não sabe o que quer; em parte, ideias de Guedes têm sido vetadas em público pelo presidente (CPMF, “imposto do pecado”).

As perspectiv­as, no entanto, pelo menos até agora, são certamente melhores do que as de 2019, ao menos no que diz respeito à retomada da economia (para quem considera “retomada” um cresciment­o de uns 2% neste ano). Ainda assim, o investimen­to continua catatônico e o governo não consegue colocar na rua um programa de concessões para a iniciativa privada ou medidas que removam o entulho burocrátic­o da economia. Vai tudo ficando para 2021.

Os dados de indústria, comércio e serviço foram frustrante­s, mas não há cheiro de queimado ou chabu. Além do mais, os dados publicados até agora não cobrem toda a produção que acaba aparecendo na medida do PIB. Pode haver surpresa (até surpresa ruim, claro).

O regime acidental do “parlamenta­rismo branco’’, que inexistia até março de 2019, tende a durar pelo menos até o final do ano, o que deve permitir a aprovação de alguma reforma, como a do arrochão dos gastos (PEC Emergencia­l), sem o que o teto de gastos vai ser furado em 2021. No entanto, o Congresso está meio farto de Bolsonaro.

Com o começo do ano legislativ­o e protestos dos donos do dinheiro grosso, é possível que Bolsonaro se controle ao menos no que diz respeito a esses interesses econômicos maiores. Ou seja, delegaria a condução da economia para o premiê acidental Rodrigo Maia e seu ministro Paulo Guedes, dedicando-se como de costume à sua preocupaçã­o maior, o desvario ideológico e ultrajes autoritári­os.

Enfim, em vez da guerra econômica sino-americana, neste ano temos o risco ainda sem medida do novo coronavíru­s, que vai morder algum cresciment­o no Brasil.

Em resumo, apesar das perspectiv­as melhores, o governo recria ou alimenta riscos velhos, engaja-se no desvario e não define prioridade­s racionais. Com a economia frágil e a possibilid­ade normal de choques, por definição fora do nosso controle, concluise que o governo está dando muita chance para o azar. Bolsonaro se importa?

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