Mangueira atualiza embate entre religiosos e carnavalescos
Enredo da escola traz Jesus de ‘rosto negro, sangue índio e corpo de mulher’
rio de janeiro Misturar fé e Carnaval nem sempre dá samba. Não para grupos religiosos que vêm aumentando decibéis contra o que veem como cortejos que vilipendiam seu credo.
A grita mais recente partiu do IPCO (Instituto Plínio Corrêa de Oliveira), de católicos que homenageiam, em seu nome, o fundador do grupo ultraconservador TFP (Tradição, Família e Propriedade).
Em abaixo-assinado, o IPCO pede “não ao samba da Mangueira que blasfema contra Cristo”. Não há folia, nos últimos anos, “em que a Face
SagradadeJesusnãosejaultrajada,sempreemnomeda‘liberdadedeexpressão’”,dizotexto.
Não foram os únicos aborrecidos com “A Verdade Vos Fará Livre”, enredo de 2020 da escola de samba carioca.
Um dos maiores portais evangélicos, o Gospel Prime, chegou a publicar que a Mangueira abraçaria a Teologia da Libertação, “que busca desconstruir as doutrinas cristãs”.
Amplificado nos anos 1970, o movimento latino-americano incorporou à Igreja Católica discursos de justiça social e ganhou o rótulo de esquerdista.
Um de seus expoentes, o teólogo Leonardo Boff, vem mostrando entusiasmo com o “Jesus da gente” da verde-erosa, com “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”.
Seria um jeito de enfiar “a visão de Karl Marx” no sambódromo, com um filho de Deus que “não é um libertador espiritual, mas um revolucionário que incentivou o uso político da igreja”, diz.
Fora a provocação barata ao presidente Jair Messias Bolsonaro, reclama o Gospel Prime. Diz o tema mangueirense: “Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem messias de arma na mão”.
Para o IPCO, “a pretexto de exaltar as pessoas mais humildes”, a Mangueira “conspurca a figura do Homem-Deus”.
A petição deles “não passou nemaquantidadedeseguidores que a gente tem”, ironiza o carnavalesco Leandro Vieira. Só a conta da escola no Instagram tem 240 mil pessoas.
Vieira, que tem as palavras Deus e família tatuadas, diz que a pressão de religiosos não o fará recuar. Seu Jesus será interpretado por pessoas como o ator Humberto Carrão e o pastor Henrique Vieira, um evangélico progressista. Os sambistas Nelson Sargento e Alcione virão como José e Maria.
“Em nome de Jesus, já queimaram mulheres, torturaram indígenas. Num Brasil onde políticos se declaram terrivelmente cristãos [alusão a falas de Bolsonaro e sua ministra Damares Alves], Cristo foi transformado neste fiador de uma política que muitas vezes incita a violência”, diz.
Em janeiro, a Arquidiocese do Rio enviou uma carta à Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba), que organiza o Carnaval da cidade, para se dizer preocupada com eventuais ofensas à religião.
A Mangueira não é a primeira agremiação acusada por conservadores cristãos de achincalhar a imagem divina.
Em 2019, a bancada evangélica acusou a Gaviões da Fiel de intolerância religiosa. O desfile do grêmio paulistano trouxe um duelo em que Satanás aparenta vencer Jesus.
A Beija-Flor protagonizou 30 anos antes o mais emblemático embate do gênero. A cúpula católica do Rio conseguiu liminar na Justiça para proibir a alegoria de um Cristo Redentor em farrapos, tal qual um mendigo. A escultura acabou entrando coberta com plástico preto e a faixa: “Mesmo proibido, olhai por nós”.
Pedro Luis Barreto Litwincuk, o pastor Pedrão, da Comunidade Batista do Rio, afirma que, para muitos fiéis, não se trata de expressão cultural, “mas uma falta de respeito com o Deus encarnado, Jesus”.
E nem um pouco contente ficou a Arquidiocese do Rio com várias representações de Jesus ao longo dos anos.
Vieira lembra da decisão da Mangueira, em 2017, de vetar uma das alegorias mais marcantes do ano: “Santo e Orixá”, que trazia Cristo de um lado, e do outro o orixá que, para umbandistas, fez o mundo.
A Arquidiocese tem um acordo com a Liesa: todo Carnaval, seu pessoal vistoria os barracões das agremiações antes dos desfiles. Se algo incomodar, sugere que fique de fora.
Vieira conta que, naquele ano, não mostrou de antemão a escultura sincretista. No Desfile das Campeãs, a Mangueira não repetiu a criação que incomodou a cúpula católica.
“A Arquidiocese pediu pra Liesa não autorizar a volta desse elemento cenográfico”, diz. Em nome do bom relacionamento com a igreja, segundo ele, escolas costumam acatar ingerências do tipo.
O desconforto religioso pode virar caso de polícia. Em 2000, a Polícia Civil confiscou da Unidos da Tijuca um painel com a Nossa Senhora dos Navegantes e, o carnavalesco Chico Spinosa foi acusado de vilipendiar um objeto de culto religioso. A santa não foi ao sambódromo.
A Beija-Flor tem histórico de quiproquós com cristãos. Em 2002, deu um jeito de esconder entre passistas uma representação de Nossa Senhora Aparecida —de novo, para não contrariar o arcebispado local.
No ano seguinte, mudou em cima hora uma coreografia na qual Cristo e Satanás trocam tiros nas ruas, e uma bala acerta uma menina de rua.
Até Olavo de Carvalho, que anos depois viraria guru do bolsonarismo, criticou. Os dois ícones religiosos, escreveu na coluna que tinha no jornal O Globo, “eram nivelados como igualmente responsáveis pela violência carioca. Não é preciso perguntar se mudou o Carnaval ou mudamos nós”.
O historiador Luiz Antônio Simas lembra que a Estácio de Sá foi campeã no grupo de acesso em 2019 com enredo sobre um Jesus negro, e que já nos anos 1970 a Arrastão de Cascadura carnavalizava os jesuítas.
Em 1976, para celebrar a ialorixá baiana Mãe Menininha do Gantois, a Mocidade foi consultá-la antes.
“Ela viu nos jogos dos búzios e só autorizou com a condição de que a bateria toda raspasse a cabeça. Isso foi polêmico demais. Disseram que nem todas as coisas deram certo no desfile porque a escola não jogou os cabelos raspados no mar, como prometido à Mãe Menininha.”