Folha de S.Paulo

Bachmann tematizou a violência contra mulheres como poucas autoras fizeram

Escritora austríaca e o italiano Primo Levi ganham novas coletâneas em português pela Todavia

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LIVROS O Tempo Adiado e Outros Poemas ⋆⋆⋆⋆⋆ Ingeborg Bachmann. Trad.: Claudia Cavalcanti. Ed. Todavia. R$ 64,90 (208 págs.) Camila Von Holdefer

Não há melhor representa­ção da obra de Ingeborg Bachmann do que a floresta que estampa a capa desta coletânea de poemas: densa, cheia de detalhes pontiagudo­s, bela e diversa —e por isso assustador­a, fascinante e inesgotáve­l.

Um olhar superficia­l não basta para apreender o entorno. Ou o leitor está disposto a se embrenhar, reconhecen­do o risco de sair ferido e de mãos abanando, ou é melhor dar meia-volta. O polisseman­tismo das metáforas e jogos de palavras torna a tradução da poesia da austríaca excepciona­lmente difícil. A tarefa coube a Claudia Cavalcanti, também responsáve­l pela seleção e pelo posfácio.

No posfácio, Cavalcanti diz que “sucumbiu à tentação de entrelaçar obra e vida” ao falar de uma autora multifacet­ada e esquiva que “há décadas atiça a curiosidad­e dos leitores”. Ela adota o procedimen­to mais eficaz: apresentar os fatos da vida de Bachmann é a melhor maneira de apresentar a obra, já que seus temas centrais vêm em grande parte do contexto histórico.

Nascida em 1926 em Klagenfurt, Bachmann também escreveu prosa, ensaios, peças de teatro e libretos de ópera. Sua obra contêm ecos da Segunda Guerra e inclui desde a decepção com um pai que se uniu ao partido nazista até a imagem de um desfile de tropas que ela supostamen­te teria visto quando criança e que a aterrorizo­u pelo resto da vida.

Não há humor nem leveza na poesia da autora, como se vê em “Dizer o Obscuro”: “Assim como Orfeu, toco/ a morte nas cordas da vida/ e ante a beleza do mundo/ e de teus olhos, que comandam o céu/ só sei dizer o obscuro”.

No fragmento biográfico citado no posfácio, Bachmann menciona Valéry, Eluard, Gide e Yeats como algumas de suas influência­s. Mas “ainda me domina o mundo rico e mítico de meu país”, escreve ela, “um mundo onde são faladas muitas línguas e por onde correm muitas fronteiras”.

Ela viveu em vários países ao longo da vida, mantendo com a Áustria uma relação dúbia. Em “Exílio”, diz: “Eu com a língua alemã/ com essa nuvem à minha volta/ que considero casa/ vago por todas as línguas”.

A obra de Bachmann contêm não só referência­s históricas, mas também filosófica­s. Tendo escrito um doutorado sobre Heidegger, suas repetições do vocabulári­o do autor não são gratuitas. Ela também foi influencia­da pela Escola de Frankfurt, por Theodor Adorno em especial.

Cavalcan ti ainda acerta ao dizer que“ovas tomate riald oc umentalàdi­s posição ”— sobretudo as cartas—expôs a obra de Bachmann a “uma interpreta­ção por vezes redutora”. Se é fundamenta­l situá-la em determinad­o contexto, é um erro soterrar sua individual­idade.

Apresentaç­ões de Bachmann são quase sempre obscurecid­as pelas relações afetivas da autora, em especial a que manteve com o poeta romeno Paul Celan. É compreensí­vel, uma vez que o vínculo marcou a obra de ambos. No entanto, pôr a ligação com Cela nem primeiro p la noé a melhor maneira deperder Bach man neseus livros de vista.

Poucas autoras tematizara­ma violência —física e psicológic­a— associada ao machismo de forma tão poderosa quanto Bachmann. Nem todos concordam, claro. Há tantas leituras diferentes de sua produção quanto há personas da autora. Segundo uma delas, na obra de Bachmann os homens simbolizam­o racionalis­mo totalitári­o, enquanto as mulheres, histéricas, representa­mos on ho eo delírio.

Masa autora( que alguns associaram ao surrealism­o) extra idas possibilid­ades do in- consciente boa parte de seu poder de surpreende­r. Suas construçõe­s são sempre críticas.

A análise que emerge dessas leituras distinta sérica em implicaçõe­s para a teoria e a prática feministas. Pela importânci­a histórica e complexida­de da obra, Bach mannéu ma das autoras mais indicadas para encetar discussões produtivas. A publicação destes poemas é um excelente começo.

Mil Sóis: Poemas Escolhidos ⋆⋆⋆⋆⋆ Primo Levi. Trad.: Maurício Santana Dias. Ed. Todavia. R$ 54,90 (160 págs.) Ricardo Domeneck

Sai no Brasil uma bela edição dos poemas de Primo Levi, o prosador que trouxe seus leitores para dentro das piores experiênci­as do seu século.

A editora Todavia apresenta aos brasileiro­s, junto ao centenário do autor, uma alentada antologia de seus poemas: “Mil Sóis: Poemas Escolhidos”. Químico de formação, não afeito a mistificaç­ões, sua poesia é de uma clareza que torna ainda mais pungente a escuridão do século em que escreveu. Pois, em fevereiro de 1944, Levi foi deportado para o campo de concentraç­ão de Auschwitz.

Quando mais tarde escreveu sobre experiênci­a tão atroz, o fez com a coragem que faria dele um dos grandes autores do século. Um dos poemas do livro parece um dos mais terríveis da poesia moderna, com sua aura de praga. Intitulado “Shemà”, a ordem de um “ouça!”, trata-se de uma oração central dos ritos judaicos.

A oração referencia o livro de Deuteronôm­io, no qual se lê: “E estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração/ e as intimarás a teus filhos e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e deitando-te, e levantando-te.” No poema de Levi, isso se torna: “Vós que viveis seguros/ Em vossas casas aquecidas/ Vós que achais voltando à noite/ Comida quente e rostos amigos/ Considerai se isto é um homem/ Que trabalha na lama/ Que não conhece paz/ Que luta por um naco de pão/ Que morre por um sim ou por um não”.

Esse poema serviria de epígrafe para o trabalho em prosa que o tornaria famoso: “É Isto um Homem?”, de 1947, relatando suas experiênci­as no campo. É uma das primeiras produções a enfrentar a grande mancha do seu século.

Não há, no entanto, incitação à vingança. Talvez seja surpreende­nte a alguns chegar às páginas finais do livro e encontrar um poema como “Os Mortos em Vão”, no qual Levi refere-se ao “exército dos mortos em vão/ Nós do Marne e de Montecassi­no/ De Treblinka, de Dresden e Hiroshima”. Sim, de Treblinka, e também os de Dresden, a cidade alemã bombardead­a pelos aliados quando a guerra já estava praticamen­te encerrada.

É de uma fortitude ética impression­ante. Não se trata de conciliaçã­o fácil. Esses mortos, entre os quais o poeta italiano inclui também os desapareci­dos políticos de Buenos Aires na ditadura militar e os mortos por bombas americanas no Camboja, acabam por dizer a nós, os vivos: “Sentem-se e negociem/ Até que suas línguas sequem/ Se persistire­m o dano e a vergonha/ Nós as afogaremos em nossa podridão.”

Outros poemas são dedicados, numa verdadeira zoopoética, a elefantes, toupeiras, aranhas e formigas. No belo “O Elefante”, fala um dos animais mortos na expedição contra Roma do cartaginês Aníbal, cruzando os Alpes. Em “Fileira Escura”, sobre uma colônia de formigas entre os trilhos do transporte urbano em Turim, evoca-se aquele outro transporte escuro dos judeus para os campos.

Ao responsáve­l pela organizaçã­o nazista desses transporte­s, Adolf Eichmann, o poeta dedica outro poema de grande força. Datado de 20 de julho de 1960, dois meses depois da captura de Eichmann na Argentina, Levi nos deixa com um dos argumentos mais claros contra a pena de morte, não por compaixão, mas por algo talvez mais próximo de uma justiça não apaziguado­ra.

“Ó filho da morte, não lhe desejamos a morte/ Que você viva tanto quanto ninguém nunca viveu/ Que viva insone cinco milhões de noites/ E que toda noite lhe visite a dor de cada um que viu/ Encerrar-se a portaqueba­rrouocamin­hodevolta/ O breu crescer em torno de si, o ar carregar-se de morte.”

São textos de clareza clássica. O título da antologia é bastante apto neste aspecto. E ao manter a ordem cronológic­a dos poemas, todos com datas, o organizado­r cria uma sensação ainda maior de intimidade em seu aspecto diarístico. Sua poesia circulou em pequenas tiragens, e Levi segue famoso como prosador.

Mas está aí sua poesia. Apesar dos temas sombrios que o autor enfrenta, o leitor sai de ‘Mil Sóis’ com o desejo de o colocar à cabeceira da cama, como uma lâmpada. Ou uma garrafa de água.

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Heinz Bachmann/Divulgação A escritora austríaca Ingeborg Bachmann

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