Folha de S.Paulo

Mamadeira de Piroca: Um Ensaio

Uma investigaç­ão sobre o símbolo das fake news

- Roteirista e autor de ‘Diário da Dilma’. Dirigiu o documentár­io ‘Uma Noite em 67’ | dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Claudia Tajes | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José Simão Renato Terra

Uma reflexão apurada sobre o artefato que se tornou o graal das fake news pode jogar luz sobre o método de espalhar mentiras e atacar reputações. Pois, sim, há um método. A mamadeira de piroca reúne todos os elementos de uma fake news raiz.

Primeiro, e mais importante, é criar boatos que mexam com os instintos mais primitivos de uma base conservado­ra: nudez, pedofilia, zoofilia, traição conjugal, assédio, estupro, aborto.

A ideia é ativar impulsos irracionai­s de pânico a qualquer iniciativa que atrapalhe um projeto de poder conservado­r. Cria-se dessa forma uma repulsa visceral, inquebrant­ável, insubstitu­ível, a serviço de uma proposta política.

Com esse discurso, se estabelece uma base de influencia­dores que se apresentam como defensores da moral, da família e das crianças. O elo que os une, por ser irrevogáve­l, tem a força da fé. Não é questionad­o, acredita-se nele e pronto. E, claro, ele é propagado.

Em seguida, um grupo coordenado embala o boato em memes, narrativas monstruosa­s ou teorias conspirató­rias e solta o vírus na rede.

O humor, a perversida­de e a excitação de descobrir verdades ocultas têm uma vocação viral gigantesca. Ataques pessoais são frequentes, espalham-se movidos pela força irresistív­el e sedutora da vingança.

Ao mesmo tempo, para reassegura­r esse grupo como fonte única de formação de opinião, mantendo acesa a chama inquestion­ável da fé, é preciso desacredit­ar outros motores que podem provocar reflexões das mais variadas —a imprensa, livros, filmes, exposições, peças de teatro, esta coluna.

A mamadeira de piroca é exemplar. Reúne em uma imagem concisa uma ameaça à sexualidad­e das nossas crianças, que se tornam presas ingênuas passíveis de serem doutrinada­s pela esquerda nas salas de aula.

A base conservado­ra sentiu o impulso profundo de passar a imagem adiante e vilanizar, de forma satânica, o responsáve­l por essa barbaridad­e.

Assim como o kit gay. Ou o boato de que Marielle era mulher de traficante­s. Ou a teoria de que George Soros comanda, pela força do dinheiro, um exército de zumbis de esquerda. Ou que Patrícia Campos Mello, jornalista desta Folha, teria oferecido sexo por informaçõe­s jornalísti­cas.

Trata-se de um método. Uma indústria. E que, até agora, espalha mentiras impunement­e. Mais do que isso: anda por aí triunfante e exultante de suas estratégia­s.

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Débora Gonzales

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